Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

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A RELAÇÃO MÉDICO E PACIENTE

Luiz-Olyntho Telles da Silva

08.06.2016

Dias atrás recebi um convite do Dr. Amauri Zimmermann e do Dr. Pedro Hugo Teixeira Fernandes Filho para fazer alguns comentários sobre a relação médico e paciente, em uma reunião de colegas da UNIMED/NH. Na abertura dos trabalhos, o Dr. Ademar Trein, Diretor de Desenvolvimento Humano da UNIMED/NH, falou da importância da humanização da medicina e sublinhou os nocivos efeitos de uma excessiva exposição dos pacientes aos Raios X. – A todos, meu agradecimento.

E a primeira coisa a dizer é que esse tema é sempre um desafio; mesmo não sendo de abordagem rara, é sempre de difícil entendimento. Tentarei ensaiá-lo começando com uma questão: será possível a relação médico-paciente?

Para tentar respondê-la, retomarei um pouco da história para ver como as coisas têm se constituído até aqui. Vou contar-lhes uma história do mundo, pelo menos uma parte dela, pois a preocupação médica em torno desse tema é muito antiga. Se tomarmos por referência uma pequena estatueta, conhecida como Vênus de Willendorf, cuja idade é estimada em cerca de trinta mil anos, teremos uma noção aproximada do tempo dessa preocupação. É uma vênus esteatopígica, conforme ao gosto do paleolítico, dizem. Mas, além das grandes nádegas, os glúteos, os seios volumosos e também o ventre protuberante podem ser indícios de uma gravidez. Os livros de história da medicina costumam apresentar essa peça como índice de uma antiga preocupação com as formas do corpo, com suas deformações, suas metamorfoses.

Como há muitas maneiras de contar a história do mundo, pensei em trazer-lhes uma versão que me encanta, relatada por James Joyce, em Finnegans Wake. Está no início do capítulo oitavo.  Começa com a letra O, maiúscula, encimando a página, bem na metade da linha. As palavras que o seguem, nas linhas abaixo, estão dispostas em uma forma triangular, como se fosse um corpo humano. Parece que todas as construções feitas pelo homem tendem a repetir as formas de seu corpo, com a cabeça acima, menor, mas comandando o corpo, maior, abaixo. As casas, tudo parece ser assim, conforme ao modelo. E esse capítulo conta a história de uma mulher, Anna Livia Plurabelle, cujas iniciais são um A, um L e um P, formando a sigla ALP. Com esta, ao longo do romance, de mais de seiscentas páginas, Anna Livia aparece inúmeras vezes, com nomes diferentes, mas esse é o mais conhecido, talvez como um modo de dizer que a mulher nunca é só uma, o que não deve facilitar em nada os diagnósticos na seara médica. Na mulher, há uma pluralidade, uma plurabelidade, para dizê-lo de um modo joyciano. E o O, maiúsculo, na inicial do capítulo, se o lemos em francês, como eau, teremos água. E não é daí que surge a vida? Como uma pequena fonte, essa água irá crescendo e transformando-se em rio. E as pessoas vão morar na beira do rio, desse rio que parece ser sempre o mesmo, embora Joyce conforme um de seus capítulos com o nome de mais de trezentos rios; e mais, Heráclito nos diz que nunca entramos duas vezes no mesmo rio.  Então, quando as pessoas vão viver à beira dos rios, podemos dizer que elas vão habitar nas margens da complexidade. Não é só que vivamos na beira dos rios, claro, se é que não caímos de outro planeta, mas também fomos feitos, como no Gênesis, de uma mistura de água e terra, aliás, como se sabe, de uma parte bem maior de água que de terra, tal como nosso planeta, feito muito mais de água. E é interessante que Joyce coloque, às margens desse rio, lavadeiras. Lavadeiras que ficam aí a lavar a roupa. Elas batem os panos nas pedras, para desencardi-los, umas de um lado, outras na margem oposta, e também conversam, fofocam, apesar de que o barulho que elas mesmas fazem, somado ao natural marulho das águas a rolar com os diferentes assuntos, não as deixe escutar direito o que estão dizendo. Além disso, o rio vai alargando-se, e tudo isso faz com que a comunicação fique cada vez mais difícil. Nós podemos, agora, analogamente, colocar, em um das margens do rio, o médico e, na outra margem, o homem. E poderíamos pensar ainda no rio, este, onde não se entra duas vezes, como a doença que aproxima o homem e o médico. E o momento é oportuno para especificarmos o objeto médico. O objeto da medicina não é o que está na outra margem, interessa-lhe o meandrolato. Seu objeto é a doença e não o homem. O homem, é preciso dizer, muitas vezes atrapalha essa relação, e isso por estar constituído de um modo particular ao qual, em seguida, abordarei.

Antes, contudo, quero falar um pouco sobre a constituição do médico na cultura ocidental. E começarei pelo juramento do médico, feito em sua formatura: o Juramento de Hipócrates. Em geral, depois de um tempo, os médicos o esquecem, principalmente quando o tomam como mera formalidade. Mas a verdade, e foi o que me surpreendeu, é que juram por Apolo, por Esculápio, e também por Higia e por Panaceia. Quer dizer, juram pelos deuses gregos, e também a respeitar as pessoas, e aos mestres, tanto quanto aos pais, e a ensinar aos seus filhos e aos filhos de seus mestres. E do mesmo modo juram nunca ajudar à morte, mesmo que lhe peçam. Sabemos assim, entre outras coisas, que o conhecimento médico era transmitido de pai para filho.

Mas é interessante jurarem por Apolo! Que jurem por Esculápio é até compreensível, mas por Apolo? Parece surpreendente, mas é que Apolo, deus do sol na mitologia grega, também é médico. Vamos então dar uma olhada nesses começos.

O grande médico, nesse período, é Esculápio. Esse o seu nome latino. Em grego, é Asclépio. Não deixa de chamar a atenção que na transcrição do juramento ao português só o nome de Asclépio seja pronunciado na forma latina, enquanto os outros permanecem na forma grega. Trata-se de uma linhagem: Asclépio é filho de Apolo, que, em latim, se diz Febo, enquanto Higia e Panaceia são filhas de Asclépio. Não basta, contudo, dizer que Asclépio é filho de Apolo, talvez seja mais correto dizer que Asclépio é filho de uma tragédia. Enamorado de Corônis, a mais bela mulher da Hélade, Apolo engravida-a. Mas essa gravidez, contudo, temos de supor que ela deve ter sido alcançada praticamente à força, ao estilo do arrebatamento, pois Corônis, mesmo grávida, temendo ser abandonada pelo deus, que fazia assim com todas, toma para si um amante também mortal, Isquis, para não ficar sozinha. Apolo, por sua vez, ao tomar conhecimento da traição, enciumado, mata a ambos com frechaços. Corônis, agonizante, o único que lamenta é Apolo não ter esperado o filho nascer para, então, matá-la. Tocado por seu pedido, quando Corônis já está sendo preparada, na pira, para a cremação, Apolo faz uma intervenção cesárea, avant la lettre, e retira o bebê, levando-o, ato contínuo, para ser criado e educado por Quirão, o centauro. É dessa tragédia que nasce Asclépio. E, para compreender como se tornou médico, temos de reconhecer em Quirão o primeiro grande médico da história ocidental. Conhecia todos os segredos dos poderes medicinais das plantas, das flores, dos venenos das cobras, capazes de matar e também de curar. Quirão era meio homem, meio cavalo. Monteiro Lobato chamava o centauro de Meioameio. Para compreender sua forma, é preciso ter em mente que Quirão é um deus, irmão do próprio Zeus e filho de Cronos. Apaixonado pela ninfa Filira, e para não despertar os ciúmes de sua esposa, Reia, Cronos une-se a essa oceânida sob a forma de cavalo; Filira, dizem, envergonhada com a perseguição de Cronos metamorfoseou-se em égua para fugir, mas o resultado, como se sabe, foi que sua transformação apenas facilitou o conúbio. De um lado, outra vez a conquista ao estilo do arrebatamento, e, de outro, o interessante é o filho desse amor disfarçado nascer com a forma do disfarce, meio homem, conforme ao seu espírito, e meio cavalo, conforme à sua alma - no sentido que a esta lhe atribuía Platão. Mas não estranhem, que esse mito não é único. Há também a história do Minotauro, um homem com cabeça de boi. Pois esse foi filho de uma mulher, Pasífae, que, disfarçada de vaca, foi fecundada por um touro. Essa é a parte mais conhecida do mito. A relação que, em geral, não se faz, é com o marido de Pasífae, Minos. Pois ele é filho de Europa, também amada por Zeus metamorfoseado em touro. Eis que começamos a discernir a força do Imaginário e seus antecedentes. Mas continuemos com nossa história. Asclépio já tinha aprendido todos os segredos de Quirão, quando aconteceu uma tragédia: Héracles, perseguindo Élato, o pai de Isquis, encontra-o refugiado na gruta de Quirão e mata-o com uma frecha envenenada, a qual, por acidente, também toca em Quirão que, apesar de imortal, fica ferido. Incapaz de curar-se, sofre tanto com a ferida, a ponto de preferir morrer. Mas como era imortal, seu sofrimento persiste até Prometeu, que havia nascido mortal, ceder-lhe sua mortalidade, ajudando-o, assim, a descansar. Não é difícil relacionar aqui a parte do juramento hipocrático referente a não ajudar à morte, a tão discutida eutanásia. Com a morte de Quirão, Asclépio torna-se seu herdeiro e sucessor, operando verdadeiros milagres, ressuscitando até os mortos. E sua fama era tanta, por tantos serem os seus milagres, que até Hades, o deus dos infernos, foi reclamar a Zeus que seu território estava ficando despovoado. Para atender o irmão, Zeus joga um raio em Asclépio e mata-o, enquanto seus seguidores passam a chamar-se asclepíades.

Observemos que esses mitos deixam marcas. Eu não sei se, hoje em dia, quando os médicos prescrevem, se ainda fazem aquele sinal parecido com um R, no campo superior esquerdo do receituário. Ultimamente, não os vejo mais, porém, quando criança, ainda os via. Meu padrinho era médico e colocava o errezinho maiúsculo lá, dizendo que era o R de Receita. Mas não era! Trata-se, na verdade da marca de Zeus. Parece um R, mas é um Z, o Z de Zeus, cortado por seu raio, . Era uma forma de invocar a presença do deus olímpico para guiar a mão do médico, para que não cometesse os excessos que vitimaram Esculápio. Assim, quando o Dr. Trein fala dos riscos de uma exposição excessiva ao Raio X, podemos dizer que a medicina não é nunca sem os raios. Eles podem ajudar, mas também podem matar. É preciso coibir os excessos.

Esses episódios, dos quais estamos falando, devem ter tido lugar por volta do ano 1.300 a.C. Faço essa estimativa porque dois dos filhos de Asclépio, Podalírio e Macaão, estiveram presentes na Guerra de Troia juntos com dois de seus alunos, Melampo e Aquiles, e isso deve ter sido por volta de 1.200 a.C.

Estava criada a tradição de os pais ensinarem aos filhos, e foi assim até Hipócrates, que, possivelmente, escreveu o texto desse juramento médico. Pelo menos, se não foi ele o autor, supõe-se que seus alunos fizessem essa jura ao terminar o curso. Quer dizer, Hipócrates tinha um curso. Então, não é por nada que se diz ser ele o Pai da Medicina. Ele propiciou mesmo uma grande reviravolta. Primeiro porque desdenhou dos conhecimentos antigos, pondo fora os documentos dos asclepíades. Era preciso fazer as coisas de outro modo, e seu grande feito foi transformar a medicina em discurso. Daí em diante não haverá apenas um conjunto de regras, formado por frases simples, e sim um discurso característico desse campo.

Hipócrates introduziu também a atenção às variações das doenças. Até então, a medicina era, basicamente, uma preocupação do Estado. Na Grécia da época, a população pagava uma espécie de imposto, o iatron, e com isso o Estado remunerava os médicos, mal, diga-se de passagem. No Código de Hamurabi, ainda anterior (1.772 a.C.), já constavam os valores com os quais os médicos deveriam ser pagos, dependendo do trabalho realizado. Tantos cheques (moeda da Mesopotâmia) por uma perna quebrada, e outros tantos para arrancar um dente, e assim também para outras afecções, sempre que atendessem com bons resultados. Tal estipulação estava ligada a uma questão social e as doenças eram muito estandardizadas. Hipócrates, então, adotando outra posição, dizia que as doenças podiam sofrer variações, e isso por dois motivos: a própria doença poderia manifestar-se de modos diferentes, e as pessoas, seus portadores, por sua própria constituição, também podiam acarretar-lhes modificações. E isso foi uma grande novidade na época, embora, até hoje, não se tenha abandonado a esperança de uma classificação geral das doenças, como apregoam os sucessivos CIDs.

Temos de considerar ainda que, nessa época, o conhecimento de anatomia era bem restrito, fator decorrente das religiões que proibiam o exame interno dos corpos. Só se permitia examiná-los externamente. Quem faz uma grande modificação nessa situação é Galeno, que viveu no segundo século de nossa era. Ele dava assistência aos lutadores de arena, os gladiadores que, como estavam sempre muito cortados pelos ferimentos das lutas, ensejavam uma vista do interior do corpo, ainda que muito primária. Verdade que ele, para fazer suas comparações, valia-se de macacos, graças à sua parecença com o humano, e, assim, parece ter sido o primeiro a fazer vivissecções, o que lhe permitiu contribuir com importantes descobertas, como, por exemplo, a da circulação do sangue. Pensava-se, até então, que, pelas artérias, circulasse apenas ar. Além do mais, e isso nos interessa de perto, Galeno dava valor à relação com o doente. Por isso, acredito, tenha-se tornado médico de cabeceira do Imperador Marco Aurélio, que não tomava um melhoral que fosse senão pelas mãos de Galeno. E temos de registrar ainda que Galeno era versado em filosofia. Era, na verdade, um importante polímata, como o fora Hipócrates, versado em filosofia, retórica, leis e ginástica. Sócrates, p. ex., anterior e contemporâneo de Hipócrates, também conhecia medicina. Os estudos médicos faziam parte da formação das pessoas bem educadas. Se exerciam todos os seus conhecimentos, isso era secundário; o importante é que esses conhecimentos serviam para a vida. A formação médica de Sócrates, como se lê no diálogo platônico, conhecido como Carmides, era ainda aquela transmitida pelos asclepíades: para tratar uma dor de cabeça era preciso que a uma determinada planta se juntasse uma fórmula de encantamento. Unidas, a fórmula e a planta produziam ótimo resultado, mas sem a fórmula, nada! E, ademais, como nos conta Crítias, Sócrates estava muito interessado em Carmides.

Como uma anedota leva à outra, há também mais uma, contada por Juan-David Nasio, que aproxima o início da medicina com o começo da psicanálise, tendo ocorrido, no dizer de Freud, com Joseph Breuer. Pois Breuer atendeu uma moça, histérica, e ela apaixonou-se por ele, e isso a tal ponto que, devido aos intensos ciúmes da esposa, teve que largar o caso e sair de férias, com sua mulher, em uma segunda lua de mel, em Veneza, onde ela engravida. Nesse meio tempo, a paciente, conhecida como Ana O., faz uma pseudociese. A filha de Breuer, nascida nessas circunstâncias, anos mais tarde se suicida. E tudo isso é atribuído a essa relação não resolvida com a paciente. Quando Ana O. procurou Freud, este a atendeu, muito rapidamente, não levando o caso adiante, embora tenha insistido com Breuer para que escrevesse e publicasse suas observações. E com Hipócrates também aconteceu algo parecido: no começo de sua carreira, ele recebeu uma moça com uma doença que ninguém conseguia diagnosticar, e menos ainda curar. Ele, também impotente para curá-la, recomendou-a ao Oráculo de Apolo, que lhe deu a seguinte profecia: que voltasse a consultar Hipócrates, pois com ele alcançaria a cura. E ela voltou, consultou-o e casou-se com Hipócrates. Não é raro vermos uma história de amor no começo de grandes transformações e também não são poucos os casos que se resolvem com o casamento. Mas a verdade é que nenhum médico pode casar-se com todas as pacientes. Então. são situações que precisam ser examinadas, analisadas mesmo com todo o cuidado.

Com Hipócrates, aparece algo muito importante e tem tudo a ver com nosso interesse de hoje. Era o início da democracia e Hipócrates também estava interessado na lei. Quando ele propõe o discurso médico, entre o médico, a doença e o homem, fá-lo desde um ponto de vista legal. Note-se que ele não diz paciente. Está o homem e está a doença. E o importante é que, quando se diz homem, se diz muito mais do que quando se diz paciente. Enquanto o paciente está restrito à sua doença, o homem, embora possa ter sua doença, tem também sua vida, com todos os seus interesses e compromissos. E, nesse caso, quando ele está doente, a relação do médico não é com o homem doente, e sim com o homem que deveria ser, com o homem saudável; a relação do médico é com o homem já curado. O homem tem que estar curado. É de lei. Se, por acaso, ele não quiser curar-se, o médico fará uma pressão na família para interná-lo, a fim de que possa ser curado. Está posto aí um ideal, e esse ideal muitas vezes marca a relação. A relação é com a pessoa, tal como se espera que ela fique após o tratamento, já saudável. É bem diferente do caso em que o médico olha para um doente, com sua doença, e se pergunta pela função que tem a doença para essa pessoa em cada momento de sua vida. Às vezes, graças a uma doença, uma pessoa consegue arrastar sua vida por anos e anos; outras, uma pessoa cheia de saúde não vai tão longe. A doença tem uma função e, quando se olha para o ideal, nem sempre fica fácil vê-la.

Agora, vamos dar uma olhada na constituição de uma pessoa. Não preciso dizer que tanto o paciente, quanto o médico são pessoas e ambos se constituem do mesmo modo. Todos nascem, vivem e morrem. No desenvolvimento de uma criança, depois de nascer, há um momento muito especial, uma fase, na verdade, chamada, pela psicanálise, de estádio do espelho. Trata-se tanto de uma fase, como de um conceito e, enquanto conceito, ajuda-nos a compreender como a criança conhece o outro. Esse é o motivo pelo qual destaquei essa fase, dentre tantas outras pelas quais passa o sujeito. Vamos ver aqui como a criança conhece o outro. Chega um momento, por volta dos seis, oito meses, quando a criança começa a reconhecer o outro. Ela se olha em um espelho, que tanto pode ser uma lâmina reflexiva, como outro ser humano, em geral um adulto, e, ao olhá-lo, ela pensa que este é ela própria. Porque ela não enxerga o nenê, ela enxerga o outro. Ela vê o outro, mas pensa que é ela. Ela pode, por exemplo, ver o adulto, em pé, e querer ficar em pé, como ele; pode até agarrar-se no andador, ou nas paredes do chiqueirinho, para tentar ficar em pé, mas, como suas pernas ainda não têm a força suficiente para tal, ela cai, e sofre uma frustração. E é assim que ela vai constituindo-se, pensando que é outro. Há mesmo quem acredite que esse modelo de percepção persiste pelo resto da vida, que, quando olhamos o outro, quando nós, adultos, olhamos para outra pessoa, a mente funcionaria do mesmo modo. E esse modo, radicalmente, consiste em quê? Consiste em ver partes. Quando uma criança olha para seu corpo, ela não é inteira, ela é uma mão, ou um pé... Quando olhamos para o nosso corpo, é o que nós enxergamos. Não vemos nossa cara, vemos só as mãos, os pés, um pouco da barriga. Vemos as extremidades. E pensamos que somos isso, ora uma mão, ora um fígado, com a diferença de que o que não vemos diretamente, nós imaginamos. A propósito, quero dizer-lhes de uma importante contribuição de Lacan. Ele divide nossa percepção da realidade em três registros: o Imaginário, o Real e o Simbólico. O corpo, ele é sempre da ordem do Imaginário. Sempre fazemos uma imagem do que se vê, e do que não vemos direito, também fazemos uma imagem. Podemos compreender, assim, a existência de muitas doenças que se imagina. Sabemos da existência das doenças imaginárias. A literatura fala delas, como, p. ex., a peça de Molière, batizada exatamente assim, Le malade imaginaire, O doente imaginário. E as pessoas sofrem com essas doenças imaginárias, como se elas fossem reais. Mencionei, há pouco, a paciente de Breuer, Ana O., que sofreu uma gravidez fantasma, com a barriga crescendo, tal como acontece em uma gravidez normal, até que, no final, era só vento. A imaginação proporcionava toda uma mudança no organismo, alterando a própria vida que pertence ao registro do Real. Isso nos permite dizer que o sofrimento causado por uma doença imaginária é real. Uma vez, Freud atendeu uma moça que sofria de uma terrível dor na face direita do rosto. Não encontrando nenhuma causa, os médicos que a haviam examinado anteriormente, atribuíram a dor a uma neuralgia do trigêmeo e o seccionaram. Esse nervo, como sabem, é o responsável pelo movimento da face. Pois ela perdera o movimento, mas não a malfadada dor. Na consulta com Freud, para surpresa, enquanto ela falava de sua vida, das lembranças de infância, apareceu uma recordação de uma bofetada com a qual seu pai a ameaçara, mas que nunca efetivou, e dai deu conta de seu sintoma. Isso nos mostra o quão forte pode ser o Imaginário, capaz de produzir efeitos reais. Quando Lacan fala em Real, ele está dizendo é que isto, o Real, é a vida. Quando uma coisa dessas afeta a vida, as coisas se complicam; um ato simbólico pode causar um efeito no Real com resultados por vezes graves. Muitos desses diagnósticos, chamados de doenças autoimunes, são devidos a conflitos não elaborados que terminam por produzir efeitos no corpo, que são basicamente imaginários.

Quero contar-lhes ainda outro episódio, para melhor descrever as dificuldades das avaliações. Certa vez, os astrônomos observaram que a medição dos fenômenos astronômicos variava muito de astrônomo para astrônomo e então, para diminuir essa diferença, eles inventaram cálculos com a finalidade de minorar o erro atribuído ao fator humano. Eles observaram, em última instância, que o homem atrapalha sua própria investigação. Para a ciência funcionar bem, paradoxalmente, o cientista atrapalha. Como consequência dessas observações, passou-se a construir aparelhos que substituem e funcionam com menos subjetividade e melhores resultados. Os computadores são, talvez, o principal exemplo disso. Esses computadores, então, eliminam o sujeito. E aí o paradoxo: para o homem funcionar melhor, tem que ficar fora do que faz. Muitos desses exames, para auxiliar os diagnósticos, têm a preocupação de eliminar a subjetividade do avaliador. Por enquanto, ainda conta com o médico que lê as imagens e dá seu parecer, mas, em breve, haverá um computador fazendo também isso. Como se sabe, muitos médicos nem sempre concordam com os pareceres de uma avaliação por Raios-X, ou mesmo por ultrassonografia. Em minha opinião, em geral, parecem-lhes exagerados. Então, quando a ciência tira fora o sujeito, ela corre o risco de tirar fora também o próprio homem. Mais ou menos como a babá que, depois de dar banho na criança, ao despejar a água, joga fora junto o bebê.

Mas quero lembrar ainda que a preocupação médica com a intervenção da subjetividade não é de hoje, e que muitos médicos buscavam contorná-la, acredito, tornando-se proficientes também em outras disciplinas. Depois de Hipócrates que, além de conhecedor de outros campos, também viajou ao Oriente para ampliar seus conhecimentos, temos Galeno, por exemplo, que, além de médico, foi filósofo, como também foram filósofos Avicena e Maimônides; Averróis, por sua vez, foi um importante jurista. Isso para mencionar apenas os nomes mais conhecidos, pois, durante toda a Idade Média, não era raro os médicos viajarem ao Oriente, onde os conhecimentos médicos eram ainda mais antigos. Buscavam uma mais ampla ilustração, uma sabedoria sobre a vida, a qual começa quando se toma o outro em consideração e isso, certamente, aumentava a credibilidade e o prestígio pessoal. Não por acaso ainda hoje estudar fora é a ambição de grande número de universitários.

Esse conhecimento extraordinário é que pode preservar a relação. Mas enquanto alguns acreditam que o paciente pode, quando muito, ser um mero informante de suas sensações, outros parecem não perceber que os pacientes, de modo geral, não sabem dizer muito bem o que se passa com eles, do que sofrem. Seu vocabulário não ajuda. Seus conhecimentos de anatomia são completamente dominados pelo Imaginário. E o fato da anatomia dos diferentes corpos não ser sempre a mesma abre sempre espaço ao engano. Então, tomar em consideração a diferença entre uma pessoa e outra, é coisa muito difícil de praticar. Daí a importância de escutar. Aliás, uma coisa que chamou a atenção do Dr. Ernest Jones, quando conheceu Freud, é que ele escutava seus pacientes. Jones já era um médico experimentado e nunca tinha visto isso antes. Ele tinha viajado da Inglaterra à Áustria para conhecer Freud, e nunca tinha visto antes nenhum médico escutar seus pacientes. É surpreendente, não é mesmo?! Devo dizer-lhes, então, que, se o ato de escutar o paciente é importante, não é fácil. Como em geral não se conhece bem a própria subjetividade e como, igual à anatomia, a vida das pessoas também revela muitas semelhanças entre si, quando um paciente conta algo que lhe está acontecendo, pode, sem querer, estar falando de algo que também está se passando com o médico. E não é que se vivam coisas particulares, mas sim que vivemos, particularmente, coisas que são comuns a todos. Quando não estamos advertidos, a confusão facilmente impera. Estamos em uma cultura que oferece, mais ou menos, o mesmo para todos; as dificuldades são as mesmas, embora nem sempre nos apercebamos disso. Falamos da importância da humanização, e é verdade, pois humanos é o que somos, muito embora por vezes se nos digam desumanos. O importante é que dizer humano muitas vezes significa ser falho.

Para alcançar a disparidade subjetiva, capaz de diferençar o médico do paciente, isso que os antigos procuravam no Oriente, um dos recursos é a experiência analítica, e isso, para não entrar em mais detalhes, graças, especialmente, à epistemologia psicanalítica. Para compreendê-la, partimos da epistemologia da ciência, que opõe sujeito e objeto. Pois a episteme, o campo psicanalítico, também se constitui assim, com o sujeito de um lado e o objeto do outro, porém com uma diferença ímpar: o sujeito é dividido e o objeto é perdido. E esse objeto, ele é próprio de cada sujeito, por constituir-se no momento em que cai da divisão constituinte do sujeito. Vejam a diferença com a ciência. Este objeto que se perde deixa o sujeito em falta e é essa falta que move a vida. Muitos pensam que a vida se efetiva na busca da plenitude, entretanto, sabemos que só a buscamos, é verdade, porque nos falta algo, e é essa falta que mantém a vida. A plenitude, o que ela acarreta, é a morte. Na plenitude já não há o que buscar. Em geral, não se reconhece que é a falta que nos movimenta. É só quando algo nos falta que vamos atrás, que nos mexemos.

Então, como podemos deduzir por meio dos diferentes exemplos mencionados, as relações com resultados importantes, usualmente, têm sua origem em um encontro amoroso, um encontro movido por Eros, movido, em outras palavras, pela atração proporcionada pelo reconhecimento, o mais das vezes inconsciente, do objeto que nos falta, no outro.
Essas são algumas das referências que podem ajudar-nos a tomar o outro em consideração, um outro que, embora parecido, tem sempre uma história e um Imaginário particular, e é sempre diferente de mim mesmo.

Obrigado.




 
A Lição de Anatomia do Doutor Tulp, Rembrandt , 1632










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