Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

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O TRIUNFO DE LUÍSA
Luiz-Olyntho Telles da Silva
Julho/2020

Estou muito agradecido à Profª Débora Mutter pelo convite para participar dos seus Drops de Clarice Lispector (via Youtube). De imediato, tanto por tratar-se de Clarice, um marco na literatura brasileira e mundial, como por vir de uma pessoa muito bem preparada, com excelente formação crítica, o que muito me honra, e ainda pelo título dado a essa série de comentários. Embora não saiba seus motivos para tal eleição, vejo nos drops uma expressão cara à literatura. São as raindrops, as gotas de chuva, falling on my head, caindo na minha cabeça, como diz a canção de B.J.Thomas, evocando Dido e Enéas, levados pela mão de Virgílio, e também Miranda, levada pela mão de Shakespeare a um encontro amoroso.

Quero dedicar esses comentários especialmente à minha amiga, a Profª Hilda Simões Lopes, que me iniciou nos estudos de Clarice. Foi uma iniciação muito importante porque minha primeira leitura havia sido um desastre.

Foi em 1964, quando saiu a primeira edição de A paixão segundo G.H. Eu não o entendera e, por isso, achara-o uma chatice. Li duas vezes e desisti. Foi só muitos anos mais tarde, depois ainda do curso da Hilda, lá na antiga Palavraria, que comecei a compreender alguma coisa da filosofia de Clarice, o suficiente para ver aí uma espécie de eixo central de sua obra.

Por isso, quando me disponho a falar sobre seu primeiro conto, quero começar com uma epígrafe retirada desse seu... dessa sua coisa, ainda que profunda e intensa, como classificou o primeiro editor de A paixão segundo G.H.

O que eu via era a vida me olhando.
C. LISPECTOR, A paixão segundo G.H.





Luiz Antonio de Assis Brasil, falando em um dos Drops de Clarice Lispector, diz dela um caso único na literatura, e estou de acordo. No ano em que nasci, em 1943, ela, com 23 anos, ficou famosa com a publicação do romance Perto do coração selvagem, no qual já notamos a influência de James Joyce. Está na epígrafe – retirada de O retrato do artista quando jovem, publicado pela primeira vez em 1916: Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida –, e também está na busca de um minimalismo revelado na valorização dos detalhes, o que, de certo modo, também a aproxima de Proust. A obra de Clarice Lispector está ocupada com os mistérios da vida que se mostram na alma humana, tal como ela enuncia também em A paixão segundo G.H.: A vida é uma missão secreta (p.177). Secreta até para si mesma, pois, cifrada, é somente na realização dessa missão que pode perceber, de relance, a missão de que foi incumbida.

A vida, para Clarice, sempre foi difícil, desde o êxodo da Ucrânia para o Brasil, com a infância pobre, até as separações e as perdas. Seu valor maior foi não ter sucumbido aos percalços. Sua mudança de nome, que antes se chamava Chaia, em hebraico Vida, poderia muito bem ter sido interpretada como um roubo – como se lhe tivessem roubado a vida –, mas nunca se queixou. Se lhe ficaram as marcas, sobraram-lhe também os recursos para enfrentar as reviravoltas do destino.

E então me ocupo com o primeiro de seus contos, publicado em 25 de maio de 1940, aos seus dezenove anos, no número 227 da revista Pan, do Rio de Janeiro. Ele poderia ser também seu último conto, pois já contém todos os principais ingredientes de sua obra, marcada sobremaneira pelas rupturas. Fátima Quintas, escritora, antropóloga e estudiosa da obra lispectoriana, que deixou há pouco a presidência da Academia Pernambucana de Letras, detectou nela três rupturas fundamentais: o tempo, o descaso com o enredo factual e a letra, identificada com a morte. O título clariciano, marca inicial de sua produção, já diz de seu futuro: O Triunfo.

Lemos neste hápax toda a ousadia de uma primeira publicação.

Conta um episódio da vida de Luísa, mas não um fato único, especial. Pelo contrário, trata-se de algo que se repete.

Da personagem, não sabemos se é loira ou morena, alta ou baixa, magra ou gorda, não sabemos nem a cor de seus olhos. Mas sabemos sim que é irônica, segura de si e que, sentindo-se ameaçada, fica lívida.

A abertura do conto é dada pelo gongo da pêndula, batendo as 9 horas da manhã, mas não da mesma pêndula presente nos contos de Machado. Esta vem acompanhada de um eco, suave, mas um eco. Um duplo? É um sinal para a luz do sol esgueirar-se pelo jardim, subir o muro, iluminar a trepadeira com mil luzes de orvalho, e penetrar no quarto. É a vida acordando Luísa, ainda que por um despertar forçado, da ordem da pene-tração. Luísa, por metonímia, é esse aposento do qual o sol se apodera, tal como os romanos se apoderaram das sabinas. Contudo, ela não se move. Notamos um conflito entre os lençóis revoltos, os cabelos espalhados no travesseiro, e sua lassa crucificação marcada pelos braços abertos, cada um para um lado do corpo. Luísa, o olhar fixo no teto, levemente pestaneja. Depreendemos então uma tensão e uma paralisia. A briga da noite anterior ainda não é assunto. Em vez disso, lá fora, um ruído de passos de criança correndo faz contraponto com sua imobilidade e com a subsequente ruptura da morte, representada aqui pelo silêncio. Há um dentro e um fora. A infância está fora, e passa depressa, corre. E o interessante é que esse silêncio, como um second léver, a coloca dentro da realidade: a outra cama está vazia. Seu marido foi embora.

Segue-se toda a análise dos motivos da separação, até ser interrompida, às 11 horas. A passagem do tempo não é clara. A descrição pode tanto referir os acontecimentos do dia anterior, como os pensamentos que fizeram as horas ser compridas e descansadas, caso em que o tempo pode passar sem ser notado, como pode, com pouco, render muito. A lógica depende do instante de ver, do tempo de compreender e do momento de concluir. Verdade que a lembrança do diálogo no qual Jorge, o marido, dá os motivos para ir embora, aparece como uma ruptura da narrativa e faz parte de um monólogo raiando ao solipsismo.

Em todo o caso, há uma segunda badalada, marcando um segundo tempo. Esse corre com a marca da água. Inicia na pintura de uma marinha, com uma viva impressão de liquidez, e passa pela pia, onde molha o rosto. Em Água viva, de 1973, ela diz assim: Para te escrever, eu antes me perfumo toda. Aqui, ela olha-se ao espelho, procura o batom, mas lembra que ele não será necessário. Depois termina no tanque de lavar roupa, o qual parece funcionar como a micvê de sua infância. Sentindo-se limpa, rescendendo a sabão, depois de ter lido e compreendido a confissão de fraqueza do marido, ela se rejubila: o marido voltará porque ela é mais forte. Ele precisará dela. Eis seu triunfo.



  


Veja aqui os vídeos da primeira
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e da segunda parte
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