Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

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PARÁBOLA PARA
UNICÓRNIOS

José Eduardo Degrazia
Guaratinguetá, SP, Penalux, 2019, 162p.
Luiz-Olyntho telles da Silva
Porto Alegre, julho de 2019.

Para Blake, a beleza corresponde ao instante em que se encontram o leitor e a obra, e é uma espécie de união mística.
JORGE LUIS BORGES






   
    Certa vez, o poeta William Blake encontrou-se com os profetas Isaías e Ezequiel. Em meio à conversa, o vate lançou a seguinte pergunta: A firme convicção de que uma coisa é assim, assim a torna? Isaías disse, em resposta, que Todos os poetas acreditam que assim seja e, em séculos de imaginário, esta firme convicção moveu montanhas; muitos, porém, são incapazes de uma firme convicção de qualquer coisa. Em seguida, Ezequiel, que acompanhava a conversa atentamente, acrescentou o seguinte: A filosofia oriental ensinou os primeiros princípios da percepção humana; algumas nações adotaram um princípio; outras, outro: nós, de Israel, ensinamos que o Gênio Poético foi o princípio primeiro. Assim, parece-me, são os poetas: quando fazem poiesis, dizendo-nos de sua weltanschauung, concorrem para a criação do mundo, onde tudo está em contínuo advir.
    Em seu ofício de poeta, entre os diferentes tropos de linguagem, José Eduardo Degrazia achou por bem privilegiar a parábola. Olhai os lírios do campo, disse uma vez Erico Verissimo, parafraseando célebre dito de O Sermão da Montanha, para dizer que o dinheiro não traz felicidade. Os lírios, eles não tecem, nem fiam. Eis aí a riqueza de uma parábola, com seu modo indireto, mais leve, e muitas vezes mais contundente, de dizer as coisas. E coisas que precisam ser ditas aos unicórnios, vale dizer, aos seres míticos, produtos da imaginação, como em geral se acredita. Lembremos, contudo, agora no plano da realidade empírica, que no mar ainda existem unicórnios. São pequenas baleias conhecidas pelo nome de Narval (monodon monóceros). Distinguem-se por um dente, um canino superior, que se estende à frente do focinho por mais de metro. Caçados à exaustão, no passado, quase foram dizimados, graças à alta procura do marfim desse córneo para fazer palitos, esses bastonetes usados para limpar os dentes. Hoje, os unicórnios marinhos são preservados com cuidados.
    Os unicórnios metafóricos de nosso bardo, acredito, são estes seres raros, conhecidos como poetas, e também os leitores que, vivendo da imaginação, precisam sempre de cuidados. Donaldo Schüler, a propósito, disse uma vez que o exército de leitores vai perdendo seus bravos na medida em que marcham do jornal em direção ao livro. As alegorias de Degrazia são, então, tais como lembretes que, em sua visão, esses sobreviventes precisam ter sempre presentes. E suponho que ele diga isso já em seu primeiro verso:
...
poesia visual
não casual
    (causal)

... (p.17)
    Para o poeta, as coisas não acontecem por acaso, não são casuais, nenhum pardal cai do telhado por acaso, como diz o ditado; sempre há uma causa.
    A descrição poética de suas percepções conforma também um convite à interlocução com o leitor. E é desde essa perspectiva que me animo a estas observações de leitura.
    Dono de uma escrita densa, o tempo, para Degrazia, é devir. É pelo devir que o ser flui (pp.19 e 77), e, embora flua, também pode ser preservado no instante em que respira lentamente uma bolha de ar, no instante em que um pássaro raro toca em uma flor, em um riso de mulher desejante (p.118).
    O centro do interesse é o ser. Afinal, como dizia Blake, onde ausente o homem, estéril a natureza. E o poeta ama a noite, quando os sonhos – frestas para o infinito –, se manifestam. O poeta recita seu verso, e os unicórnios, tais os marinhos, usando seu corno como antena, logo ficam diante das imagens propiciadas pelo poema.
    Ora, diz-nos em símile Degrazia
:       
...
Os poetas são como os reis magos

que sempre andam atrás de alguma estrela
(p.62).

    E silhuetas negras crescem em nossa imaginação sobre um fundo azul iluminado por branca estrela. Sua cadência orienta o leitor a outro destino, o qual logo será ultrapassado.
A poesia
salva
a fotografia
 

A fotografia
salva
a poesia (p.76).
    A cenografia dos poemas provoca as mais diferentes lembranças:
...
Um corpo
coberto
na notícia
do jornal

... (p.26).
    E lá estava eu de volta a São Paulo, de visita a uma irmã, nos Jardins: pela manhã, havia um corpo caído na calçada; ao meio-dia, um vizinho cobriu-o com o jornal do dia anterior; já escuro, veio o rabecão.
...
A fotografia é a passagem,
e no meu olhar eu ultrapasso
terras, menires, monólitos,
faço uma nova geografia
que é tua, também sendo minha,
e que mistura a minha mão
com o teu olhar que manifesta
uma imagem que não se explica (p.63)
    O poeta não se exclui da paisagem. Ele não apenas faz parte dela, sabe também que, sem ele, ela não existe, embora muitas vezes pensem que são centauros (p.65). A fotografia não aprisiona o objeto, dimensiona-o noutra realidade (p.76).
    Lembremos que parábola é também um lugar geométrico por meio do qual se pode determinar, com precisão, em um plano, um lugar do qual dois pontos determinados estão equidistantes. Se esse ponto for a verdade, a aletheia (p.29), da qual nos fala o autor, tudo o que os dois pontos podem, com relação a ela, é isto: ser equidistantes; tocá-la, jamais. Para tanto, que não se descuide dos precisos ensinamentos de Euclides (27), pois o poeta não é como a aranha que faz cálculos sem saber teoria (p.43). Mas não pensem que isso evoluirá para uma rigidez mecanicista. Não! Pois, em seguida, Degrazia lembra que a chuva chove e o sapo (p.30) coaxa. Na sombra das bambolinas, um Manuel Bandeira cicia: Que soluças tu / transido de frio / Sapo Cururu / da beira do rio?
    Se a vida tem um outro lado, o que importa é a beira de cá, onde está a vida. Esta costuma ser complicada e comporta-se como um texto a ser traduzido pelos trugimãos juramentados (p.33). Quer dizer, a vida é assunto para os poetas, pois nem tudo são favas contadas.
Entre a pedra e a água
a natureza espera a vida;
cores, espumas, a solidez/solidão
da rocha nua. Crua. (p.39)
    A eterna pergunta pela origem da vida está presente. Além do tempo, Atena observa o poeta (p.88) e, no olhar da coruja companheira convivem terra, água, fogo e ar. Os quatro elementos de Empédocles conformam as substâncias do universo físico, do lado de cá. E para saber como tudo começou, ele recorre a Anaxímenes (p.111), este grego, materialista e monista, para quem todos os elementos derivam do ar. Se Orfeu desceu ao ínferos, e voltou, que fique com sua lira; se Pitágoras vê na matemática o alfabeto utilizado por Deus, para escrever o universo, que seja, ao poeta importa, antes de tudo, o ar que respira:
Eu quero é respirar (p.111).
    A vida pode ser curva, / ou a reta infinita (p.60) – que desde o infinito retorna, como disse Girard Desargues, há mais de quatrocentos anos – , ao poeta estoico interessa a paz de espírito buscada desde Zenão de Cítia, o que se alcança – conforme acreditava o filósofo –, pela apreensão cognoscitiva da forma de ser da própria realidade, vale dizer, pela fantasia cataléptica. Daí, contudo, o Poeta sai em viagem: vê um vaso, e viaja na flor, um barco, e viaja no cais, uma nuvem, e viaja no céu, um poema e viaja na alma (p.55). As imagens percebidas pelo poeta são como portas para o infinito da imaginação. A curiosidade, alicerçada em uma posição de não saber, é seu porto de partida.
    E então o engano. Se é impossível viver fora dele, que se faça uma muralha antitrampa (p.67). É preciso estar avisado de que certos enganos não se pode deixá-los passar. Os tanques de guerra, o derramamento de sangue, a xenofobia e o racismo, o ódio e os velhacos, os maus e as lanças, as máfias e os assaltantes, o fascismo, lembra o Poeta, jamais poderão passar, nem a soberba nem as gangues. Mas as crianças e os pássaros, os rios de leite e mel, a luz e a alegria, a amizade e os tratados, os bons e a música, os operários e os artistas, o sonho e a poesia, e também a paz e a democracia precisam ter sempre passe livre.
    Depois, há pequenas joias esparsas. Algumas só podem ser ditas em outra língua, como esta:

The lightning
in the lighthouse
fiat lux (p.85).

    Em inglês (com o último verso em latim, no genesíaco latim de São Jerônimo), ficou perfeito. Em português – embora a relação entre relâmpago e farol permaneça, pois poderíamos pensar que a letra l do radical grego lamp (lâmpada), que em grego quer dizer archote, está presente em ambos os substantivos –, a rima seria difícil. O importante é que, para fazer luz, é preciso estar dela imbuído. E não está demais lembrar as últimas palavras atribuídas a Goethe, no seu leito de morte, licht, mehr licht!
    Parábola para Unicórnios, em suma, é uma poesia, uma elevada poesia, que, com ela, carrega, engranzada, uma poderosa aula de poética. E ao seu autor, José Eduardo Degrazia, pela abertura ao diálogo, só posso dizer, então, tante grazie!





Para fazer sua crítica,


FORTUNA CRÍTICA:

- José Eduardo Degrazia:
Uma análise ao mesmo tempo profunda, de quem conhece, mas também lírica, de quem vive intensamente a realidade poética.

 - Esther Brum Chagas:
Parabéns...uma análise dessas mostra a tua sensibilidade como escritor.

- Débora Mutter:
Magnífico estudo profundo e poético se não é redundância unir tais adjetivos. Dá gosto de ler!

- Sidnei Schneider;
Ótima crítica.

- Dulcinea Santos:
Lendo sua crítica, sobre o livro de Degrazia – PARÁBOLA PARA UNICÓRNIOS –, lembrei-me de Ezra Pound, quando refere o método adequado de estudar literatura, dizendo corresponder, assim, ao dos biologistas: exame cuidadoso e direto da matéria, e contínua COMPARAÇÃO de uma lâmina ou espécime com outra. Buscando na Natureza, por exemplo, a imagem das pequenas baleias “Narval”, e observando-lhes o traço que as distinguem, um dente, um canino superior, que se estende à frente do focinho por mais de metro, com que fim o faz, senão o de estabelecer uma comparação com os unicórnios metafóricos,  esses seres raros, conhecidos como poetas, as antenas da raça que antecipam as gerações? Pound dizia que os melhores críticos são os que focalizam a atenção no melhor que se escreve. Esse modo de proceder está conforme com uma das três modalidades de poesia especificadas por Erza Pound – a FANOPEIA–, aquela que lança imagens sobre a imaginação visual. Antes de lermos o livro do poeta José Eduardo Degrazia, já sabemos, pois, que este é poesia visual/ não casual/ (causal). Poesia à frente do focinho por mais de metro. Poesia escrita com as antenas da raça. Concordo com Pound: um crítico vale, não pela excelência dos seus argumentos, mas pela qualidade de sua escolha.