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MEU ENCONTRO
COM MOISÉS
Luiz-Olyntho Telles da
Silva
Novembro de 2019.
Li, dia desses, que o risco de extirpar
a corcova de um camelo, é o de que deixe de ser camelo. Um preceito importante,
ao qual, mesmo sem o conhecer, tenho seguido por toda a vida.
Na minha mulher, sua corcova é o tempo que toma para se arrumar. Passa
horas e horas se pintando e, depois, não sai de casa sem dar mais um retoque
na maquiagem. No início, não tenho por que não dizer, isso me irritava um
pouco. Gosto de ser pontual e, quando tinha de ir acompanhado, acabava chegando
sempre um pouco atrasado nos compromissos. Até um dia escutar um colega que,
em tom de brincadeira, justificava a inexistência da mulher exatamente com
o argumento da corcova de minha esposa. Elas mesmas consideravam-se transparentes,
dizia ele, e, se não colocassem meias de seda, uma boa camada de base no rosto,
seguida de ruge, batom e rímel, sentiam-se invisíveis! Então fui me acalmando,
deixando de reclamar, e, reconhecendo que aquele momento, de tanta concentração
e seriedade, teria que ter mesmo um grande valor para ela, parei de irritar-me
e comecei a tirar proveito da situação. Aproveitava para ler algum artigo
no jornal, do qual só havia lido as manchetes e, quando a saída era para
alguma festa, relaxava tomando um uísque. Mas naquele dia foi demais.
Era minha primeira vez na Europa e o primeiro dia em Roma, onde havíamos
chegado à noite do dia anterior. O hotel da Rua Cavour era muito bom, com
quatro estrelas luminosas, uma varanda voltada para os fundos, da qual se
podia apreciar boa parte da cidade, e um toucador que deixara minha esposa
encantada. Era uma peça antiga, colocada aí, supus, para quebrar um pouco
o moderno da decoração pós-reforma e estava muito bem. Com três espelhos,
um central e dois laterais, móveis, que lhe permitiam dar a angulação precisa
para melhor ajeitar detalhes de seu penteado. E lá estava ela – parecia –,
preparando-se para deslumbrar Roma. Pelo modo como se prepara, ajeitando sobre
o toucador sua coleção de pós, pinturas, pincéis, escovas, batons e perfumes,
não se podia esperar que aquilo fosse terminar logo, não seria assim no mais
que aquele rostinho ficaria do seu gosto, ainda mais em Roma. Dei uma olhada
nos jornais, os que não estavam em italiano, estavam em inglês, a vista da
varanda não me chamava muito a atenção e para um uísque era muito cedo. Antes
do café da manhã, nunca! E, já ansioso, resolvi sair para dar uma pequena
caminhada.
Em frente ao hotel, havia um muro alto e comprido, e, meio sem pensar,
atravessei a rua, com pouco movimento naquela hora da manhã, disposto a melhor
observar o belo edifício do hotel em que nos hospedáramos. Em estilo neoclássico,
com as suntuosas colunas fronteiriças a uma port-cochère, as portas
e janelas encimadas de ventarolas em arco, formavam um todo ao mesmo tempo
imponente e agradável. Caminhava, um pouco distraído, talvez pensando no apropriado
desse estilo para o conforto dos hóspedes, pois os espaços tendiam a ser
sempre amplos, por certo consultando o relógio, de tanto em tanto, quando
– acredito que pelo contraste entre o amplo que vinha ocupando meus
devaneios –, reparei na estreita abertura que apareceu no muro, de repente,
dando lugar a uma escada que logo se alargava. Para onde subiriam aqueles
degraus? Olhei para o relógio, perguntando-me se hoje seria diferente, se
ela terminaria mais cedo seu toucado, mas não, decidi que não, e deixei-me
vencer pela curiosidade. Pois ao fim do curto túnel encontrei-me em um largo,
completamente silencioso, sem viva alma, um corredor de casas, em uma rua
que terminava em curva, e, à minha esquerda, por sobre o muro, avistei uma
igreja. Uma fachada simples, simples até de mais, se comparada com a de nosso
hotel, porém cercada por uma alta grade de ferro. Ao aproximar-me, vi um portão
apenas encostado e fui entrando. Com poucos passos alcancei a alta porta
da Igreja, também entreaberta. Que custava? A sedução do toucador, com aqueles
espelhos ajeitados, haveria de segurá-la por mais algum tempo. E entrei,
no primeiro passo já deslumbrado com sua abóbada. Estava sustentada por colunas
dóricas e decorada com um afresco multicolorido que cobria quase toda sua
longa nave central. Lembro que era uma dessas pinturas com duas cenas, comuns
no medievo, uma terrena e outra celeste. Caminhava por sua nave, apreciando
os detalhes dos altares laterais, quando, quase ao alcançar o altar central,
no lado direito uma estátua magnífica chamou-me a atenção. Representava um
homem sentado, mas com a perna esquerda mais baixa, o pé esquerdo posto um
pouco para trás, como se estivesse preparando-se para levantar, e, quem sabe,
até já um pouco levantado, ou levantando, com umas pranchas sob o braço direito,
como que arriscando a cair, devido a um movimento brusco; um rosto forte,
coberto por espessa barba e um olhar penetrante completavam-na. Não podia
ser! Não podia acreditar que estivesse diante do Moisés. Seria uma réplica
da obra de Miguel Ângelo? Uma réplica da qual eu nunca ouvira falar? E resolvi
dirigir-me ao altar principal para fazer o teste do olhar. Se ele me seguisse
com os olhos, seria ele mesmo. E me seguiu. Não era uma cópia. Era a própria,
a verdadeira escultura de Buonarroti.
Freud, quando se dedicou ao Moisés, em uma obra da sua maturidade, também
enfrentou dúvidas, parecidas com as minhas, dúvidas que tinham como fundo
comum a questão da autenticidade. As dele eram sobre a origem do grande líder.
Judeu ou egípcio? Primeiro, por não acreditar que seu nome derivasse do hebraico
Mosheh. Não que Moisés, conforme o significado etimológico
de seu nome, não tivesse sido tirado das águas – pois, afinal, quem
não foi? –, mas sim porque não via motivo para uma princesa egípcia batizar
uma criança, adotada como filho, com um nome hebraico, de escravos. Para o
mestre vienense, a origem do nome era egípcia, derivada de Mose. Com
o significado simples de criança, costumava vir acompanhando o nome de algum
deus, como Amom-mose, Ptah-mose, com o significado de Amon-enquanto-criança,
Ptah-enquanto-criança. E o importante é que, para Freud, essas dúvidas levaram-no
muito adiante em sua pesquisa sobre o libertador que fundou a religião dos
hebreus.
Para mim, a dúvida ajudou a situar-me. Sendo autêntica, como a estátua
havia sido esculpida para encimar o túmulo do Papa Júlio II, isso queria dizer
que esse papa estava enterrado ali, naquela que era a sua Igreja, a igreja
de sua família, da família dos Della Rovere, construída, ainda no
quatrocento, para abrigar as correntes com as quais São Pedro estivera
preso, primeiro em Jerusalém, depois na própria Roma. Depois, na mesma época
em que o Brasil estava sendo descoberto, e o Cardeal Della Rovere eleito
Papa, a Igreja fora toda reformada e as cadeias de São Pedro colocadas em
um relicário sob o altar-mor da Basílica. E lá estavam elas. Já não havia
mais dúvidas. Estava na Igreja de São Pedro em Vincoli, aquela era a legítima
estátua de Moisés, ladeado por Raquel e Léa, e voltei para ver a escultura
de perto. O relógio, inexorável, avançava, mas tinha de olhar o joelho de
Moisés. A marca do perché non parla não estava mais, mas estavam as
Tábuas da Lei recém recebidas no Monte Sinai, logo após seu encontro com a
Sarça Ardente, e estavam os dois cornos, discretos em meio à volumosa cabeleira.
Freud, ao que tudo indica não reparara em sua presença; provavelmente tomou-os,
como faziam os antigos, como uma natural representação dos raios divinos,
pois em hebraico há uma similaridade entre as palavras chifres (queren)
e raios de luz (qâran).
Seus olhos ainda me seguiam quando deixei a Igreja, triste e quase culpado
de deixá-lo só, estático naquele silêncio. Mas, com minha esposa, a função
corcova teria já cumprido seu efeito e terminado seu make-up. Não podia retardar-me
nem mais um minuto. E, de fato, quando cheguei ao hotel, estava linda e resplendia,
mas eu, eu levei um xingão por tê-la feito esperar.
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