JACQUES LACAN
 

LÓGICA DO FANTASMA
1966 – 1967

COLEÇÃO
O SEMINÁRIO
LIVRO 14

Estabelecimento
Isagoge e Notas
de
Luiz-Olyntho Telles da Silva

Para uso interno do
RECORTE DE PSICANÁLISE


 
 
23 de novembro de 1966
 
 

INTRODUÇÃO

Eu gostaria hoje de tentar avançar para o uso de vocês algumas relações essenciais e fundamentais para assegurar de início o que neste ano trataremos à respeito de nosso tema, à respeito de nosso sujet[24].

Espero que ninguém fará aí objeção da abstração pela única razão de que esse seria um termo impróprio como vocês verão. Nada mais concreto do que isto que vou avançar, mesmo que este termo não corresponda à qualidade de espessor no qual a conotação é muito maior.

Trata-se de tornar-lhes possível tal proposição como aquela que até aqui eu não tenho avançado mais que sob a aparência de uma sorte de aforismo que teria desempenhado uma torção em nosso discurso, refiro-me ao axioma: não há metalinguagem. Fórmula que tem o aspecto de ir contra ao que é dado, senão na experiência, pelo menos nos escritos daqueles que tratam de fundar a função da linguagem.

Senão em todos, pelo menos muitos casos mostram na linguagem algumas diferenciações as quais se encontram a partir de uma linguagem-objeto, e edificando sobre esta base um certo número de diferenciações, o ato desta operação parece implicar que para falar da linguagem se usa algo que não está aí e que a envolveria de uma outra ordem disso que a faz funcionar.

Creio que a solução destas contradições aparentes que se manifestam no discurso, no que se diz, está em encontrar em uma função que me parece essencial deslindar ao menos pelo viés que tratarei de inaugurar hoje, de deslindar especialmente para nosso propósito, pois que a lógica do fantasma me parece que não saberia articular-se sem a referência a isto do que se trata, a saber: “a escritura”; não é seguro, portanto, dizer que se trata disto que vocês conhecem sob as anotações ordinárias desta palavra, mas se eu a escolho é antes porque deve haver alguma relação com o que nós iremos enunciar.

Um ponto preciso sobre o qual nós nos debruçaremos hoje, sem cessar, é este: não é a mesma coisa depois que nós tenhamos dito algo do escrever, ou mesmo depois de escrever o que se disse.

Pois a segundo operação essencial à função da escritura, precisamente sob o ângulo, sob o viés por onde eu quero hoje mostrar-lhes a importância para o que segundo nossas referências é o mais próprio ao sujet deste ano, e isto desde logo se apresenta com conseqüências paradoxais.

Depois de tudo, por que não, para lhes despertar, por que não voltar a partir do que eu já, através de um viés, lhes apresentei sem que se possa dizer, eu me repito, que é bem da natureza das coisas de que se tratam aqui, que elas apareçam[25] sob algum viés, algum espinho que perfura a superfície sobre a qual, pelo próprio fato de falar, somos forçados a nos manter?
 

1  2  3  4
o menor número inteiro
que não está inscrito
                     no quadro

Isto poderia ter sido escrito de modo diferente. Eu poderia, sem escrevê-lo, perguntar-lhes, ou mesmo fazer um pequeno trejeito com a boca do qual sairia isto que nas tiras desenhadas se chama uma bolha, o menor número inteiro que não está inscrito no quadro.

é o número 5

Está claro que a partir do momento onde esta frase se inscreve, o número 5 aí estando de fato inscrito (aí está excluído), vocês não teriam senão que procurar se esse não seria o número 6.

Este paradoxo não é portanto inútil para introduzir a escritura  por este viés por onde algum enigma pode se lhes apresentar. Trata-se de um enigma, para falar propriamente, de um enigma lógico, e esta não é a pior maneira de lhes mostrar que há alguma relação estreita entre o aparelho da escritura e o que se pode chamar a lógica. Isto merece ser lembrado no momento em que a maior parte daqueles que estão aqui teriam disto [da lógica] uma noção suficiente (mesmo para aqueles que não tivessem nenhuma; isto poderia servir de enganche para lembrar que se há algo que caracteriza os não novos, novos no sentido de que estão longe, de qualquer maneira) de poder se conter e se reabsorver nesta lógica clássica e tradicional; estes não novos estão inteiramente ligados aos jogos de escrita.

Coloquemos então uma questão: desde o tempo que eu falo da função da linguagem, desde que, para articular isto que há aí do sujeito, do inconsciente, eu construí, foi preciso que eu o fizesse passo a passo e diante de uma audiência que se fazia, a meu entender, puxar pelas orelhas, que eu construí o grafo que foi feito para ordenar precisamente o que na função da palavra é definido por este campo que necessita a estrutura da linguagem e o que se chama as vias do discurso ou os desfiladeiros do significante.

Em algum lugar neste grafo está escrita a letra A, à direita, sobre a linha inferior. Este A, em um sentido que podemos identificar ao lugar do Outro [Autre], é o lugar onde se produz tudo o que se pode enunciar, quer dizer: isto que eu chamei de o tesouro do significante. E isto não se limita, em princípio, à palavra do dicionário, pois correlativamente à construção desse grafo comecei a falar da palavra espirituosa[26], tomando as coisas por este viés indispensável para evitar toda confusão, o traço “nonsensical”, “nonsense”[27], que há na palavra espirituosa.

Para entender a dimensão que se trata de deslindar, lhes mostrei o parentesco ao menos ao nível da recepção timpanal, o parentesco que tem com o que foi, para nós, em um tempo de prova, a mensagem pessoal, quer dizer: todo enunciado enquanto que ele se recorta não-sensicalmente[28]. Eu fiz alusão disso na última vez.

O conjunto dos enunciados também faz parte deste universo do discurso que está situado no A. A questão que se coloca e que é propriamente uma questão de estrutura, é a que da sentido a isto: o inconsciente está estruturado como uma linguagem. Isto é um pleonasmo em minha enunciação, uma vez que eu identifico estrutura a esta linguagem comum na estrutura que eu vou tratar de fazer funcionar diante de vocês.

Trata-se deste universo do discurso na medida em que ele implica este jogo do significante, entanto que ele define estas duas dimensões da metáfora pela qual a cadeia pode sempre não se incluir mais que em uma outra cadeia pela via de uma operação de substituição, entanto que por essência ela significa que este deslizamento diz que nenhum significante pertence propriamente a nenhuma significação.

Lembrar esta dependência do universo do discurso que permite um mar de variações disso que constitui as significações, esta ordem essencialmente movediça e transitória onde nada, como eu disse em seu momento, assegurava senão a função que eu chamei, sob uma forma metafórica, os points de capiton[29]. É isso, hoje, o universo do discurso, que se trata de interrogar a partir deste único axioma o qual trata de saber o que no interior deste universo do discurso ele pode especificar; axioma que avancei na última vez: o significante, esse significante que temos definido até aqui como representando um sujeito para outro significante, esse significante, o que ele representa?

Isto está definido pelo axioma chamado de especificação: nenhum significante, ainda que reduzido à sua forma mínima, a letra, saberia significar-se a si mesmo.
 
 

LÓGICA E ESCRITURA

Este axioma vem formalizar o uso matemático que tende precisamente a isto: que quando nós temos em algum lugar, e não somente em um exercício de álgebra, colocada uma letra A, a retomamos em seguida como se na segunda vez em que nos servimos dela ela fosse sempre a mesma. Não façam esta objeção que eu não faço...

Saibam que nenhuma enunciação correta de um uso qualquer da letra no que está mais próximo a nós, por exemplo o uso de uma cadeia de Markov[30], necessitará de todo aquele que ensina a etapa propedêutica de fazer sentir bem isso que tem de escolho, de arbitrário, de absolutamente injustificável neste emprego do A, totalmente aparente, por outro lado, para representar o primeiro A como se fosse sempre o mesmo. É uma dificuldade que está no princípio do uso matemático. Sobre esta pretensa identidade nós não temos nada para fazer hoje aqui posto que não é de matemática que se trata. Eu quero lembrar-lhes que o fundamento, que o significante não é mais que o ponto fundado para significar-se a si mesmo, está admitido por aqueles que na ocasião não podem fazer um uso contrário deste princípio, ao menos na aparência, mas seria fácil de ver por que intermédio isto seria possível.

Mas não quero extraviar-me por aí.

Meu propósito é este, é saber qual é a conseqüência  deste universo do discurso, deste princípio que diz que o significante não saberia significar-se a si mesmo? Que especifica este axioma neste universo do discurso, discurso entanto que está constituído por tudo o que se pode dizer? Qual é a classe de especificação que este axioma determina? Forma parte do universo do discurso? Se não forma parte, isto seguramente é um problema para nós. O que especifica – eu o repito – o enunciado axiomático, de que o significante não saberia significar-se a si mesmo, teria por conseqüência especificar algo que, como tal, não estaria no universo do discurso, enquanto que precisamente nós acabamos de admitir em seu seio, enquanto acabamos de dizer que engloba tudo o que se pode dizer. Nos encontramos então com algo divertido que significaria isto: isto que não pode formar parte do universo do discurso, não saberia dizer-se de nenhuma maneira posto que falamos disto em que eu os introduzo, isto não é evidentemente senão para dizer-lhes que é o inefável. Temática da qual se sabe que por pura coerência, sem estar por isto com a escola de Mr. Wittgenstein da qual é inútil falar, sem chegar a isto, em uma tal fórmula na qual vocês vejam bem que não lhes economizo o relevo nem o obstáculo que ele constitui, posto que também nos será necessário voltar ali, eu faço tudo para que as vias lhes sejam franqueadas nisto do que trato que me sigam.

Tomemos em princípio o cuidado de por à prova isto que especifica o axioma: que o significante não saberia significar-se a si mesmo fica separado do universo do discurso.

O que é que vamos colocar então?

Isto do que se trata, o que especifica a relação que enunciei (que o significante não saberia significar-se a si mesmo), enquanto que ela forma parte do universo do discurso, podemos traduzi-la pela fórmula:

S  w  S

onde tomamos da lógica este pequeno signo w, no qual vocês reconhecerão a forma de meu punção no qual se faz bascular um chapéu, e que serve para designar na lógica dos conjuntos a exclusão, o “ou” exclusivo, o que implica que o significante em sua apresentação repetida não significa mais enquanto funciona uma primeira vez ou enquanto funciona uma segunda vez, e que entre ambas há uma hiância radical.

O significante não saberia significar-se a si mesmo; já dissemos que é isto o que determina este axioma como de especificação no universo do discurso e vamos designá-lo por um significante B, um significante essencial no qual vocês notarão que ele pode se apropriar disso: que o axioma torna preciso que não saberia, senão em uma certa relação, engendrar-se nenhuma significação. B é precisamente este significante do qual nada objeta que se especifique nisto, nada objeta que ele marque esta esterilidade, o significante em si mesmo sendo justamente caracterizado por isto, que não há nada obrigatório, que está longe de ser o sujeito, que ele engendre uma significação. Eu simbolizo esta característica por 

É o que me permite dizer que a relação do significante a si mesmo não engendra nenhuma significação. Partamos disto que parece se impor: é que algo que eu enunciarei forma parte do universo do discurso.

Eu me sirvo momentaneamente de meu pequeno punção para dizer que B forma parte de A, no qual eu lhes indiquei a complexidade decompondo este pequeno signo de todas as maneiras. 

Trata-se de saber se não há alguma contradição que resulte disto: a saber se o fato de que nós tenhamos escrito que o significante não saberia significar-se a si mesmo. Podemos escrever que este B não se significa a si mesmo, mas formando parte do universo do discurso pode ser considerado como algo que sob o modo que caracteriza isto que chamamos de uma especificação pode escrever-se: B, forma parte de si mesmo.

É claro que a questão se coloca: B forma parte de si mesmo? Dito de outro modo: o que arrasta a noção de especificação, a saber, o que nós aprendemos a distinguir em muitas variedades lógicas, quero dizer que há aí muitos que sabem que o conjunto não é superposto à classe. Tudo deve enraizar-se em uma lógica de especificação.

Nos encontramos diante de algo do qual, ademais, o parentesco deve aduzir razões suficientes ao que eu chamei na última vez o paradoxo de Russel entanto que isto que enuncio aqui nos termos que nos interessa: a função dos conjuntos, entanto que ela faz algo que eu não tornei meu todavia, pois não estou aqui para introduzi-lo senão para mantê-los em um campo que logicamente está fora disso. É ocasião de tratar de pegar algo: a saber o que funda a posta em jogo do aparelho dito teoria dos conjuntos que, hoje, se apresenta como totalmente original, seguramente, a todo enunciado matemático e a quem, para quem, a lógica não é nenhuma outra coisa que isto que o simbolismo matemático pode pegar, será também o princípio, e é isto que ponho em questão: o fundamento da lógica, se é uma lógica do fantasma, é pelo que ela é mais principiante[31] ao olhar de toda a lógica que se funda nos desfiladeiros formalizadores onde ela se revelou na época moderna tão fecunda.

Tratemos de ver o que quer dizer o paradoxo de Russel, quando cobre algo que não é lei do que está aí no quadro negro, simplesmente promove como totalmente encoberto este fato de um tipo de significante que toma de todas as maneiras para uma classe, estranho erro dizer por exemplo que a palavra obsoleta representa uma classe onde estaria incluída ela mesma sob pretexto que esta palavra obsoleta é obsoleta, é um pequeno escamoteio que tem interesse somente de fundar como classe os significantes que não se significam a eles mesmos, enquanto que precisamente nós colocamos como axioma que em nenhum caso o significante não saberia significar-se a si mesmo e que é de lá que é necessário partir, desembrulhar-se, não seria isto mais que para perceber que é necessário explicar de outra maneira que a palavra obsoleta pode ser qualificada de obsoleta. É indispensável fazer entrar aí o que introduz a divisão do sujeito.

Partamos porém da oposição que põe um Russel a assinalar algo que seria contradição na fórmula que se enunciaria assim de um subconjunto B do qual seria impossível assegurar o estatuto a partir disto: que seria especificado em um outro conjunto A por uma característica tal que um elemento de A não se conteria a si mesmo. 

É fácil nesta condição mostrar a contradição nisto: que nós não temos mais que senão tomar um elemento Y como formando parte de B para aperceber-nos das conseqüências que há desde então a fazê-lo por sua vez como tal, parte como elemento de AA e não sendo elemento de si mesmo. 

(Y e B)  (Y e A – Y e y’)[32]

A contradição consistiria em por B em lugar de Y cada vez que nós fazemos B elemento de B, resulta disto que posto que ele forma parte de A, ali não deve formar parte de si mesmo. Se por outro lado, B estando posto, substituído no lugar deste Y se não forma parte de si mesmo satisfazendo o parêntese da direita, forma parte portanto de si mesmo em um desses y elemento de B: eis aqui a contradição na qual nos coloca o paradoxo de Russel: trata-se de saber se em nosso registro, podemos ficar aqui, deixá-lo passar ao aperceber-nos do que significa a contradição posta em valor na teoria dos conjuntos, isso que nos permitirá talvez poder dizer porque a teoria dos conjuntos se especifica na lógica, a saber: que passo ela constitui em relação àquilo que tratamos aqui de distinguir.

A contradição da qual se trata neste nível onde se articula o paradoxo de Russel diz respeito, como o próprio uso das palavras nos livra, a isto: que eu lhes digo.

Porque se não o digo, nada impede esta fórmula, mais precisamente a segunda ter como tal, escrito, e nada diz que seu uso parará. Isto que eu digo aqui, não é de nenhuma maneira jogo de palavras, pois a teoria dos conjuntos entanto tal não tem absolutamente outro suporte, mais que o que eu escrevo como tal, que tudo o que se pode dizer de uma diferença entre os elementos está excluído do jogo escrito, manipular o jogo lateral que constitui a teoria dos conjuntos, consiste em escrever como tal o que eu digo aí: a saber que o primeiro conjunto pode estar fechado por sua vez pela simpática pessoa que gravará meu discurso, do vaso que está sobre este vidro, que isto constitui um conjunto, que porque eu digo que nenhuma outra diferença existe, mais que aquela que está constituída pelo fato que eu pude aplicar sobre estes objetos que venho de nomear e dos quais vocês vêem suficientemente o heteróclito, um traço unário sobre algum, e nenhuma outra coisa.

Eis aqui isto que faz que já que nós não estejamos ao nível de uma tal especificação, posto que eu ponho em jogo o universo do discurso, minha pergunta não encontra o paradoxo de Russel, a saber: que não se deduz nenhum obstáculo, nenhuma impossibilidade nisso que B do qual eu comecei a supor que poderia formar parte do universo do discurso, seguramente ainda que faça a especificação que o significante não saberia significar-se a si mesmo, pode quiçá ter consigo mesmo certa classe de relação que escapa ao paradoxo de Russel, a saber, de nos mostrar algo que seria poder ser sua própria dimensão. Nós vamos ver em que estatuto ele [o paradoxo] forma parte do universo do discurso. Com efeito, eu tomei o cuidado de recordar-lhes a existência do paradoxo de Russel, eu gostaria de poder servir-me dele, para fazer-lhes sentir algo.
 
 

A REPETIÇÃO

Vou fazer-lhes sentir primeiro do modo mais simples e em seguida de um modo um pouco mais rico.

A questão se coloca em saber se este B, colocado como um significante que não engendra nenhuma significação, forma parte do universo do discurso. Eis aqui dois exemplos.

O catálogo dos catálogos

Vou fazer-lhes sentir da maneira mais simples porque desde há algum tempo eu estou pronto a todas as concessões. Querem que eu diga coisas simples, pois bem, eu direi coisas simples. Vocês estão já bastante formados para isto, graças aos meus cuidados, para saber que esta não é uma via tão direta para compreender, ainda que isto que lhes digo pareça simples, lhes restará ainda uma desconfiança. 

Um catálogo de catálogos, eis aqui desde o princípio que se trata de significantes. Seremos surpreendidos pelo fato de que não se contenham a si mesmos, posto que isto parece ser uma exigência desde o princípio. Nada impediria que o catálogo que não se contém a si mesmo não se imprima a si mesmo. Nada o impediria, nem mesmo a contradição de Russel.

Consideremos esta possibilidade: que para não se contradizer, ele não se inscreve em si mesmo; não há mais que quatro catálogos que não se contém a si mesmos: A B C D.  Suponhamos que apareça um outro catálogo que não se contenha a si mesmo: E. Que há de inconcebível em pensar que há um primeiro catálogo que contenha A, B, C e D, e um segundo catálogo que contenha B, C, D e E? Não nos surpreenderá que a cada um falte esta letra que é propriamente aquela que o designaria a si mesmo senão a partir do momento em que engendrem esta sucessão sobre o perímetro de um círculo. Aí se perceberá que isto acontece porque a cada catálogo lhe faltará um. Veja-se um número maior e teremos que o círculo desses catálogos não farão algo que é precisamente isto que responde ao catálogo de todos os catálogos que não se contém a si mesmos; simplesmente o que constituirá esta cadeia terá esta propriedade de ser um significante a mais que se constitui como fecho da cadeia, um significante incontável e que, justamente, por esse fato poderá ser designado por um significante, pois não estando em nenhuma parte, não há nenhum inconveniente nisso que um significante surja, que o designe como o significante a mais, aquele que não se aferra à cadeia. Eu tomo um outro exemplo: os catálogos não são feitos, desde logo, para catalogar os catálogos. Os catálogos dos objetos estão aí em algum título (a palavra título tendo aí toda sua importância), seria fácil engajar-se nesta via – a dialética do catálogo dos catálogos –  mas eu irei por uma via mais viva.
 
 

O livro

Nós voltamos com o livro aparentemente no universo do discurso. Mas na medida em que o livro tem algum referente, e onde ele também pode ser um livro que tem que cobrir uma certa superfície que registra algum título, o livro compreenderá alguma bibliografia, o que quer dizer alguma coisa que se apresenta apropriadamente para imaginarmos isto: do que resulta portanto que um catálogo viva ou não viva no universo do discurso. Se eu faço o catálogo de todos os livros que contém uma bibliografia, naturalmente não é de bibliografias que eu faço o catálogo. Contudo, ao catalogar estes livros, enquanto que nas bibliografias eles se reenviam uns aos outros, posso muito bem cobrir o conjunto de todas as bibliografias. É aqui que pode situar-se o fantasma que é propriamente o fantasma poético por excelência, aquele que causava obsessão em  Mallarmé: o livro absoluto; é neste nível onde as coisas se renovam ao nível do uso não do puro significante, senão do significante purificado. Portanto, o que eu digo e o que eu escrevo é que o significante está aqui então articulado como distinto de todo significado, que eu vejo então esboçar-se a possibilidade deste livro absoluto, no qual o próprio seria que englobasse toda a cadeia significante propriamente nisto que ela pode não significar mais nada. Nisso há algo que se averigua como fundado na existência ao nível do universo do discurso, do qual porém nós iremos suspender esta existência da lógica própria que pode constituir aquela do fantasma, pois também é a única que pode nos dizer de que maneira esta região suspende no universo do discurso, seguramente, não está excluído que ele entre aí senão em outro lugar, é certo que aí se especifica, não por esta purificação da qual eu falava há pouco, pois a purificação não é[33] possível no que é essencial ao universo do discurso, a saber: a significação. Eu lhes falarei quatro horas mais deste livro absoluto, de modo que não fique menos disto que tudo que lhes digo tem sentido. O que caracteriza a estrutura deste B enquanto que nós sabemos situá-lo no universo do discurso, dentro ou fora, é o que lhes anunciei recém, fazendo este A B C D E que simplesmente fecha a cadeia, resulta que cada grupo de quatro pode deixar fora de si o significante estranho que significa para representar o grupo pelo fato de que não está aí apresentado a cadeia total será constituída, o conjunto de todos estes significantes fazendo surgir esta unidade a mais, o incontável como tal, que é essencial a toda série de estruturas e que é aquela sobre a qual fundei desde 1960 toda minha operatória da identificação, a saber o que voltarão a encontrar na estrutura do toro. Para buclar[34] sobre o toro um certo número de voltas, para fazer operar uma série de voltas completas sobre um corte e para fazer-nos o número que lhes agrade mais, basta – é satisfatório mas obscuro – fazer duas para ver aparecer esta terceira volta necessária para que a linha morda o rabo; isto será esta terceira volta, assegurada pela buclaje do buraco central pelo qual é impossível não passar para que ele se recorte. Eu digo suficiente, de tudo aquilo que eu disse, para que vocês me entendam, contudo é muito pouco para que eu lhes mostre que há ao menos duas cadeias na origem pelas quais isso pode se efetuar e que o resultado não é o mesmo para o surgimento desta uma [volta] a mais.

Esta indicação sugestiva não tem nada que esgote a riqueza do que nos fornece o menor estudo topológico. Trata-se hoje de indicar que o específico deste modo da escritura é justamente distinguir-se do discurso pelo fato de que pode fechar-se e fechar-se sobre si mesmo; é daí que surge esta possibilidade de um um que tem totalmente outro estatuto, diferente daquele do um que unifica e engloba, porém deste um que já do simples fechamento e sem que seja necessário entrar no estatuto do um a mais, posto que ele não se sustém mais que pela escritura, e que está apesar de tudo aberto em sua possibilidade no universo do discurso, posto que é suficiente como eu o fiz remarcar, que eu escreva, porém que é necessário que nesta escritura tenha lugar, isto que eu digo da exclusão, deste um, este é suficiente para engendrar este outro plano que é aquele onde se desenvolve propriamente falando toda a função da lógica, a coisa sendo-nos suficientemente indicada pela estimulação que a lógica tem recebido de submeter-se ao jogo próprio da escritura, próximo disto que lhe falta sempre para se recordar, que isto não repousa senão sobre a função de uma falta, daquela mesma que está escrita e que constitui o estatuto da função da escritura.

Eu digo coisas simples, ainda que com o risco de fazer-lhes parecer enganoso este discurso. Vocês teriam se enganado em não ver que isto se inclui em um registro de perguntas que dão desde então à função da escritura algo que não saberia senão repercutir até o mais profundo de toda concepção possível da estrutura pois que a escritura da qual falo não se suporta mais que deste retorno sobre si mesma e de um corte.

Somos aqui levados a isto: que as atitudes precisamente as mais fundamentais, ligadas ao progresso da análise matemática, nos levaram a isolar disso aí a função de borda. Enquanto nós falamos de borda, não há nada que nos possa fazer substantificar esta função na medida em que vocês deduzem indevidamente que esta função da escritura é delimitar este movimento como sendo aquele de nossos pensamentos, o do universo do discurso. Longe disso, se é algo que se estrutura como borda, isso que a limita a si mesma está em situação de entrar por seu turno na função bordejante.

Aí está o que nós temos a fazer – ou então é a outra via sobre a qual espero terminar – é a lembrança do que desde sempre é conhecido nesta função do traço unário.

Terminarei evocando o verso 26 de um livro para fazer entender do que se trata na função significante: o Livro de Daniel.

As calças de um zuavo[35] designa em uma palavra o que se chama: anopak, a menos que isso seja o que partilham os personagens em questão.

No livro de Daniel vocês têm a teoria do sujeito surgindo no limite do universo do discurso (raiz da função de repetição em Freud), é a história do festim dramático no qual não encontramos mais o menor traço nos anais. “Mane, Mane, Tekel, Farés”[36]. Mane quer dizer “contar”, como salienta Daniel. Ele diz duas vezes para mostrar a repetição mais simples. É suficiente contar até dois pelo que há aí, que a raiz da repetição se exerce contrariamente ao que na teoria dos conjuntos, não se o diz. Não se diz que a repetição busca repetir, é precisamente isto que escapa pela função da marca, já que a marca é original na função da repetição. É por isso que a repetição se exerce pela repetição da marca; mas para que a marca provoque a repetição procurada, é preciso que sobre o que é procurado, a marca, esta marca se apague ao nível do que ela marcou, que está aí porque na repetição o que é procurado, que por sua natureza se oculta, deixa perder isto: que a marca não saberia se redobrar senão borrando, repetindo a marca primeira, quer dizer, deixando-a deslizar fora da entrada. Mane – alguma coisa falta ao ponto. Tekel – o profeta Daniel o interpreta aos príncipes que querem, com efeito, passar alguma falta, esta falta radical que emana da própria função de contar enquanto tal; este um a mais que se pode e que não se pode contar é o que constitui esta falta da qual convém que nós lhe demos sua função lógica, aquela que faz precisamente estalar o que há no universo do discurso, da bolha, insuficiência do que se encerra na imagem de todo imaginário, eis a via pela qual tem efeito a entrada do que se situa no ponto radical.

A letra da qual se trata, a letra enquanto que falta, posto que hoje refaço uma irrupção sobre esta tradição judia sobre a qual eu tenho tantas coisas a dizer, onde eu estive até poder me reapanhar; de tudo isto algo me resta.

“Começa o livro... por esta bet...[37] esta letra que nós empregamos, a A de Aleph não é hoje aquela de onde tornou a sair toda a criação de alguma maneira religada sobre ela mesma, é porque uma de suas letras está ausente que as outras funcionam, mas é sem dúvida na sua falta que reside toda a fecundidade da operação.

23 de novembro de 1966
 

24.  Sujet, em francês, da conta tanto do “sujeito” como do “objeto” de trabalho, do assunto, do tema.
25.  No texto francês aparece émergent, forma subjuntiva, inexistente no português, de émerger [emergir].
26.  No texto francês consta mot d’esprit, traduzido por Paulo Medeiros, no Seminário que neste momento Lacan comenta, coincidentemente, o de número 5, As formações do inconsciente [1957-58], como “palavra espirituosa”.
27.  Estas duas palavras aparecem em inglês, tanto no texto francês como no espanhol, embora em ambos grafadas de forma incorreta. São praticamente sinônimos, com o sentido de “absurdo, despropósito, tolice, ridículo”, sendo que a primeira conota ainda a idéia de “contra-senso”. (Dicionário Inglês-Português de Leonel e Lino Vallandro).
28.  Lacan se utilizou aqui de um anglicismo; fizemos o mesmo!
29.  Optei por conservar a expressão em francês, uma vez que a língua portuguesa já havia adotado o francesismo “capitonê”, que, enfim, diz do que aqui está em jogo.
30.  Andrei Andreievitch MARKOV, matemático russo. Dedicou-se principalmente ao cálculo das probabilidades. Em 1907 foi levado a considerar um tipo de relação denominada processos ou cadeias de Markov, na qual a lei da probabilidade depende não de toda evolução anterior dos sistemas, mas do valor assumido num instante determinado. Introduziu a estatística na macrolingüística (1913).
31.  O texto francês  utiliza aqui o neologismo principielle. Parece algo da ordem de um “princípio”, do qual pode participar também a idéia de “principal”.
32.  O último e da fórmula deve constar como barrado ( / ). Não consta como barrado por impossibilidade técnica.
33.  No texto francês aparece n’est point, expressão literária – ao gosto de Lacan – para “negação”.
34.  No texto francês aparece boucler, que deu origem ao português “bucle”, grafado pelo Aurélio. Criei o neologismo a partir daí, mesmo embora pudesse ter utilizado o verbo “riçar”, já existente.
35.  Soldado francês servindo na Argélia. Faire le zouave significa “maliciar”, “bancar o palhaço”.
36.  O verso a que Lacan se refere, neste seminário apócrifo, está no capítulo 5 do livro de Daniel, conhecido como “O festim de Baltazar”, e a mencionada inscrição aparece, na verdade, no versículo 25. Os versículos 26,27 e 28 são dedicados à interpretação de cada um dos três termos, já que o primeiro aparece de forma repetida; é por aí, aliás, que Lacan toma a questão da repetição. Por uma questão de rigor, se considerarmos a repetição de Mane, conforme aparece no texto aramaico, seria preciso adotar, conforme ao mesmo texto, para o terceiro termos a forma Parsin, em vez de Farés. – Conforme aos comentadores da Bíblia de Jerusalém, “Na forma desses vocábulos misteriosos reencontram-se os nomes de três pesos ou moedas orientais: a mina, o siclo e a meia-mina (parás), e os termos se prestaram “a série de trocadilhos dos versículos 26-28, mane sugerindo o verbo maná (medir), tecel, o verbo shaqal (pesar), e parás, ao mesmo tempo o verbo paraç (dividir) e o nome dos persas. Não há unanimidade sobre o sentido da seqüência: alusão ao valor decrescente dos três impérios que se sucedem (babilônios, medos, persas), ou dos três reis: Nabucodonosor, Evil-Medorac e Baltazar (ou ainda : Nabucodonosor, Baltazar e os reis dos medos e persas) ou, enfim, algum provérbio antigo cuja pista se perdeu.
37.  É possível que esta palavra incompleta, bet... se refira a bêtise, asneira.