OS LIMITES DE UM NOME  
por 
Luiz-Olyntho Telles da Silva 
1996
 
 
Em Manhattan (filme de 1979), alguém pergunta  
ao personagem representado por Woody Allen  
quem ele pensa que é, Deus? Ao que ele responde: 
- Bem, com alguém agente tem que se identificar!  
WOODY ALLEN.  
“Não duvido que São Francisco de Assis  
conversava com os pássaros,  
eu só me admiro de eles terem tido assunto.”  
LUIS FERNANDO VERISSIMO.  
Um diálogo imaginário entre Zaratustra e Lacan:  
Ao descer da montanha, acordado, Zaratustra  
encontra-se com Lacan, que o acompanha  
na descida, aproveitando a caminhada para por  
a conversa em dia. Ao passar por um velho  
dedicado em seu bosque, na companhia dos  
animais, a louvar a Deus, comenta com Lacan:  
- “Será possível que este santo ancião ainda não  
ouvisse em seu bosque que Deus já morreu?”  
– Que ele não saiba disto, não me surpreende –  
respondeu Lacan – pois nem mesmo Deus o sabe!

 

 O tema do qual pretendo tratar é o da formação dos analistas. O fato de termos uma mesa dedicada ao assunto neste XI Recorte, diz de uma preocupação da instituição com o mesmo. 

É conhecida a equiparação da formação dos analistas com as formações do inconsciente, o que talvez também nos permita falar em formações (plural) do analista (singular). Em todo o caso, entre tantos pontos de discussão, um parece francamente admitido: a transmissão da psicanálise passa pelo divã, através da análise em intensão, como diz Lacan na Proposição de 9 de outubro de 1967. A análise de controle e os estudos, o que Lacan chama de psicanálise em extensão, seriam um suplemento na formação do analista. 

Quando penso em aplicar a mesma expressão plural – formações – tanto para o inconsciente, como para o analista, estou pensando na consideração ao exame das particularidades e idiossincrasias de cada um, as quais irão desembocar na produção de um analista. E o que se espera é que, em algum momento, para seu advento, este analista possa reconhecer-se desde si mesmo, na relação com seus colegas. Esta é uma das funções que podemos pensar para a instituição. E isto tem uma conseqüência que me parece das mais importantes: o reconhecimento por si mesmo implica em assumir um risco a título pessoal. Sabemos que quem expõe, se expõem, justamente por enunciar um significante que diga do sujeito. E a instituição funciona como um grande Outro desde o qual a palavra do analista se contextua. 

É dentro deste espírito que pretendo falar de um pequeno detalhe atinente às formações. 

Contudo, não posso iniciá-lo sem falar da preocupação que inspirou este escrito. Há pouco tempo o Cartel de Ensino do Recorte distribuiu um questionário entre seus membros para saber em que estádio da formação cada um dos membros se encontrava. A justificativa do questionário estava fundamentada, pelo cartel, desde sua preocupação com a meta de planejar e organizar os temas e horários comuns de estudo. Mas alguns leram neste questionário algo mais, e a discussão que isto gerou – e um conseqüente mal-estar, não deixemos de registrar – envolvendo desde a autoridade do cartel para este tipo de questionamento (começava, por exemplo, perguntando se o questionado se reconhecia como analista), passando pela possibilidade de distinguir entre ‘Cartel de Ensino’ e ‘Cartel de Formação’, até a versão de que o questionário seria uma forma errada de fazer o passe. Isto tudo, sem deixar de mencionar os atos falhos ocorridos neste período – atos falhos que nos fazem lembrar a feliz expressão de Ricardo Diaz Romero (que hoje nos honra com sua presença), quando chamava a atenção para o quanto de lapsos está presente nos laços sociais uma vez que em geral os lapsos são sociais, de salão – isto tudo, dizia, me fez pensar que o assunto era importante mas precisava ser retomada desde outro ângulo. 

Quando Ricardo falou disto, da relação laço-lapso, no aniversário de 20 anos da Escola Freudiana de Buenos Aires, ele lembrou que embora Lacan tenha proposto o passe como uma forma de ingresso na Escola, a EFBA, assim como sua Associação Escola Sigmund Freud Rosário, e eu poderia acrescentar a Escola Freudiana de Montevidéu e o próprio Recorte, entre outras instituições que conheço, que mesmo reconhecendo a importância do ensino de Lacan, não adotaram este requisito. Aos 20 anos a EFBA estava as voltas com este assunto como detectou Ricardo em uma leitura atenta de seu Correio. No Recorte, estamos no transcurso de nosso sexto aniversário, e se o questionário foi um erro, isto não me parece o mais importante. Como diz Isidoro Vegh em  entrevista no Caderno sobre o Passe: “As vezes há que se percorrer um caminho equivocado para saber que há que se ir por outro... O que é mau é persistir no mesmo erro, sem capacidade para aprender algo [com o erro].” Eu não sei se o passe como requisito de ingresso acabou ficando como um resto responsável pela disseminada interpretação de que, segundo tenho ouvido de colegas de outras instituições, os que entram em uma instituição psicanalítica – isto de uns tempos para cá – já se consideram analistas, como se o ingresso eqüivalesse ao passe. Por certo que alguém que já é reconhecido como analista pode entrar em uma instituição, são vários os motivos que levam a isto; mas em geral não é o que ocorre. Em geral as pessoas entram em uma instituição para incrementar sua formação, e aí, pode ser que se sintam obrigadas, compelidas a imediatamente funcionar como analistas, caso em que se deveria rever o discurso. É possível que uma crescente adoção de cursos estruturados ao estilo universitário seja uma tentativa de barrar este movimento, mas não creio que este seja o caminho. Ainda acho que a análise é o melhor remédio, como dizia a revista Seleções do “rir”. Assim que estas discussões me fizeram pensar que a preocupação era com uma ética. 

A preocupação com a formação dos analistas precisa ser sempre a preocupação com uma ética. É preciso uma ética para ir em busca da verdade; á ética é um instrumento necessário (que não para de se escrever), e eu diria que o fato de Lacan dedicar justamente o seu Seminário de número sete ao estudo da ética não é uma ironia sem sentido, pelo menos para nós que reconhecemos no número sete o número da mentira. Não se trata do exame de uma moral maniqueísta, nem de uma ética vista como um signo, um sigla ou um slogan, como disse Jean Szpirko. Quando Lacan fala da ética da psicanálise, é antes a uma metapsicologia fundadora que se reporta, tomando aos primeiros escritos de Freud como um real a ser desbravado. De modo que o que pretendo apresentar-lhes é uma leitura de alguns pontos deste seminário, e o que os mesmos me inspiraram. 

Em uma análise, não se trata de levar o analisante a acreditar nos ideais do analista. Luiz Fernando Veríssimo contou outro dia uma história de um crítico ‘estruturalista’ que se perdeu na jângal e foi adotado por uma tribo de orangotangos. Resgatado anos mais tarde, o crítico revelou que conseguia conversar com os orangotangos, aos quais ensinara um vocabulário rudimentar, feito de grunhidos e batidas no peito, com que eles formavam frases como “magnífica a sua tese sobre o fundamento ontológico do discurso auto-reflexivo”, ou “espantoso, professor, como alguém poderia taxar de irrelevante sua teoria sobre os referenciais água/engenharia no nome de Merleau-Ponty!” Não preciso dizer-lhes que não é isto que se espera, ao contrário, no final da análise o analisante se encontra com o vazio no lugar do analista, vazio resultante da caída do sujeito suposto saber. E o encontro com este vazio, a conquista do território do vazio, como diria Alain Corbin, é penoso e feito pari passu. 

José Zuberman diz muito bem que na destituição subjetiva implicada no desêtre do analista, quando o analista cai do lugar de sujeito suposto saber, cai do lugar de Deus, de Deus do saber. É neste sentido que leio Lacan quando ele diz que Deus está morto, morto desde sempre. 

Poderíamos então pensar na formação do analista como em uma ética da relação com o vazio? 

Isidoro Vegh, no improviso próprio a uma entrevista (as pessoas se preparam a vida toda para obter alguma destreza no assunto e vem alguém e chama de improviso, mas é assim, que fazer? Em todo o caso, o campo da música nos diz bem o que significa um improviso.), no improviso para o Caderno do Recorte, fez uma caracterização deste vazio que me pareceu muito apropriada. Ele pergunta: “Como pode ser que se no fim da análise, segundo os matemas de Lacan, e segundo o que sua experiência obviamente lhe ensinou, um analisante descobre qual era a fachada com que seu analista sustentava esta estrutura que chamamos transferência; [como pode ser que] se no fim da análise ele descobre o vazio desse lugar (...), tenha justamente vontade de se dedicar a sustentar isso?” Isidoro diz mesmo que no passe se trata de dar conta do resto deste lugar, pois se para o final da análise temos um matema, para este outro momento não, por implicar justamente uma dimensão do real. 

Neste caso, nossa preocupação dirigir-se-ia para a condução da cura nesta direção, na direção do vazio. Trata-se de uma ideologia, então? Eu não responde-ria com uma afirmativa de um modo assim tão rápido, pois estou de acordo com Lacan quando ele diz que hoje não se pode separar o assunto da ética do que se chama de uma ideologia, e é interessante ver o que ele recolhe dos intelectuais de esquerda e dos de direita. 

Ao de esquerda, classifica de fool e demeuré, tolo e retardado: é um inocente de cuja boca saem verdades não toleradas mas que encontram sua função. 

Ao de direita classifica como knave, um valete, um criado que Stendhal chama de coquin fieffé, um maroto consumado. 

O knave não recua diante das conseqüências do realismo; quando preciso, confessa-se um canalha. Mas, diz Lacan, um canalha equivale a um tolo e o desespero da ideologia de direita na política é que a constituição dos canalhas em bando desemboca em uma tolice coletiva. Por outro lado, continua Lacan, a foolery, que confere seu estilo individual ao intelectual de esquerda, desemboca extremamente bem em um canalhada coletiva. 

De modo que se se trata de adotar uma ideologia, não se trataria de nenhuma destas, antes de um caminho que possibilite ao sujeito fazer sua escolha, inclusive a de uma destas, por exemplo. O que me parece importante é que o sujeito possa encontrar sua relação particular ao gozo. 

A morte de Deus deveria ter modificado as bases do problema ético, mas a questão é que o gozo permanece proibido do mesmo modo que antes de sabermos desta morte. Freud, em O mal-estar na cultura, diz que o gozo é um mal porque comporta o mal do próximo. Lacan menciona duas passagens, da parte V e da parte VI, em que Freud se refere ao próximo como Homo homini lupus. É isto que Lacan destaca no próximo, embora Freud traga esta característica agregada a de ‘ajudante potencial’ e a de ‘objeto sexual’. Quando Lacan diz que “Aqueles que preferem os contos de fada fazem ouvidos moucos quando se fala da tendência nativa do homem à maldade”, etc., ele está fazendo uma paráfrase de um poema de Goethe, citado por Freud, o qual diz que “as criancinhas não gostam” quando se fala na inata inclinação humana a ruindade. Temos de pensar que estão falando de outra coisa, pois este não é o Freud advogado da perversão polimorfa infantil que faz o sucesso dos contos de Grimm, nem o Lacan da Grimmigkeit. Diria que estão falando da dificuldade de reconhecimento no mesmo objeto do bom e do mau. Quando fala de das Ding, Lacan diz que no nível do inconsciente, o Gute, o bem, Wohl kantiano, é também o mau objeto. É difícil integrá-lo porque o sujeito não tem acesso ao mau objeto, ele se mantém a distância. 

Há poucos dias pude ler um trabalho de Ricardo Diaz Romero sobre esta mesma questão do ‘próximo’. Aproveito sua presença para um breve comentário, pois é um texto que traz muitas coisas para pensar, entre as quais agradeço pela distinção topológica entre o três e a trança. Mas ao item I de seu trabalho ele chama Nebenmensch, Nächste, Mitmensch, [e] änlich       [e tudo isto seguido de um ponto de interrogação]? A mim ocorreu traduzir este encadeamento sinonímico pela pergunta: quem é o próximo? – Não sei se o Ricardo estará de acordo? (da platéia, Ricardo responde que sim, que está de acordo). 

Quando Lacan fala do Nächste, o próximo, ele o faz desde o ‘grande mandamento’: Amarás ao próximo como a ti mesmo. E destaca que o próximo é, em primeiro lugar, um ser malvado. É verdade que ele diz em primeiro, ou seja que o lugar do malvado não é o único. Como há pouco dias havia escutado também uma conferência do poeta Armindo Trevisan, em que ele falava desta mesma pergunta – quem é o próximo? -, interessei-me em saber que mandamento é este em jogo, pois não consta do decálogo mosaico. Encontrei-o então no Evangelho Segundo São Lucas.  Interessante – permitam-me a digressão – que os Evangelhos parecem o resultado de uma espécie de trabalho de Cartel: todos os evangelistas trabalharam o mesmo assunto e depois deram dele a sua versão. Como conseqüência há muitos temas que se repetem e outros que aparecem apenas na leitura de um evangelista, como é o caso deste ‘grande mandamento’: encontrei-o apenas em São Lucas (10:27) e parece representar a síntese cristã dos dez   do Antigo Testamento. Aparece quando um legista, para criar uma situação de embaraço, é assim que Lucas se expressa, pergunta a Cristo: “Mestre, que farei para herdar a vida eterna?” Cristo, por sua vez, responde com outra pergunta: - O que diz a lei sobre o assunto? E o doutor recita: “Amarás o senhor teu Deus, de todo o coração, de toda a alma, com toda a tua força e a do teu entendimento; e ao teu próximo como a ti mesmo.” O.K., acrescenta Jesus, é isto aí. Mas o maroto coquin fieffé continua, como que para apertá-lo, e faz a pergunta: “E quem é o meu próximo?” Neste momento Lucas, que era médico, o que me permite suspeitar que tenha sopesado a paciência do Mestre, se expressa assim, de forma lacônica: “Jesus retomou”, claro, o Bom Jesus da Praia retomou, mas não antes de ter cofiado a barba, como poderia ter dito Saramago. E aí responde com a parábola do bom samaritano que vocês conhecem. A opção é pelo bom, o próximo é o bom, ao avesso de Freud, pelo menos no entendimento deste intelectual de direita. Mas tenhamos presente que, na sua enunciação, a parábola diz que os maus são o plural; os indiferentes, o sacerdote e o levita, singularmente dois: e o bom... um. Não se poderia entender como o enunciado de uma proporção? Talvez trançá-los? – Quer dizer, todos estão de acordo quanto a ser difícil reconhecer o mau como sendo o próximo, embora todos saibam que ele ronda. 

Mas é bom lembrar que não é apenas em relação ao mau objeto que o sujeito não consegue se situar, ele também não suporta o extremo bem proveniente de Das Ding. Lembram que, depois de todo o esforço, Moisés não entra na terra prometida; Tancredo Neves não toma posse na presidência da República; assim como tantos outros, eles têm um gozo ante portas. Ele pode gemer e até mesmo explodir, dirá Lacan, ele faz sintomas que tem originalmente uma função de defesa. Contra o quê? Contra a mentira! A defesa, diz Lacan, se constitui por algo que tem um nome: a mentira sobre o mal. 

No nível do inconsciente o sujeito mente como maneira de dizer a verdade; é um modo de acesso à verdade. Esta é a descoberta inicial de Freud. Já no Projeto ele fala de uma Proton yeudoV, a primeira mentira histérica. É daí que Lacan retira o conceito de defesa. Freud já havia reconhecido que a compulsão histérica se origina de um tipo especial de formação simbólica característica de um processo primário, e a força ativadora deste processo é a defesa por parte do eu, um eu que trabalha em excesso devido às características naturais da sexualidade. E ele dá um exemplo muito esclarecedor: trata-se de Emma, não a Eckstein, nem a Goldman, outra Emma da qual nunca mais falará. Seu sintoma: não pode entrar nas lojas sozinha, destaca Freud. Ela dá como explicação uma lembrança dos doze anos quando entrou em uma loja para comprar algo e viu dois vendedores rindo juntos – ainda lembra de um deles – e então saiu correndo. Pensou que estavam rindo das roupas dela e lembrou também que tinha sentido uma atração sexual por um deles. Como poderíamos dizer hoje: explica mas não justifica. E Freud insiste, obtendo uma segunda lembrança não relacionada por Emma até então: aos oito anos de idade fora por duas vezes comprar doces em uma confeitaria, sendo que logo na primeira o proprietário agarrou-lhe os genitais por cima da roupa; mesmo assim voltou uma segunda vez, e agora se recrimina por considerar que pudesse ter querido provocar o atentado. O vínculo associativo entre as duas cenas é indicado pela própria Emma através do riso dos vendedores que lhe fez lembrar do sorriso com que o proprietário da confeitaria acompanhou o atentado. O que resta no sintoma está vinculado à roupa, e a verdade é indicada sob esta cobertura mentirosa da roupa, evidentemente o elemento mais inocente entre as associações do complexo (como lembra Freud muito anos antes do grupo de Zurique), pois na primeira recordação, quando estava próxima da puberdade, não aparece o elemento sexual contido na segunda lembrança dos oito anos. Freud se dá conta de que está diante de duas espécies de processos Y entrelaçados: retidos nos neurônios Y eles são pura quantidade impedida de descarga, e aí, impedida a liberação sexual, como destaca Freud, isto se transforma em angústia. É a posteriori, através da transformação mentirosa, a proton pseudos, que a sexualidade em jogo pode ser apreendida. E esta relação com Das Ding, como sendo mau, o sujeito só pode formular através do sintoma. 

Eu lhes dizia há pouco da interpretação do ‘grande mandamento’ como uma síntese dos dez mandamentos. As duas partes: amarás [de um lado] a Deus e [de outro] ao próximo, sintetizariam todos os dez. Segundo a tradição judaica, os primeiros cinco mandamentos descrevem os deveres do homem para com Deus, e os cinco últimos suas responsabilidades para com o próximo: não pecar contra a castidade, não furtar, não levantar falso testemunho, não desejar a mulher do próximo, [e] não cobiçar as coisas alheias. No meio destes cinco últimos mandamentos, como que para dar-lhes um equilíbrio, está justamente a interdição ao falso testemunho, a interdição à mentira. Ao proibí-la, a Lei a inclui como um desejo fundamental, junto ao desejo do incesto. É através da mentira que se dá a relação essencial do homem com Das Ding, com a Coisa. Ao proibir, a Lei diz da importância do proibido. O futuro do presente determina: amarás ao próximo, como em uma espécie de formação reativa (Reaktionbildung) ao infinitivo presente e impessoal desejar. Pela forma negativa, pela Verneinung, a Lei diz que o que se deseja são as coisas e a mulher do próximo, os mandamentos 6 e 7, ‘não cometer adultério’ e ‘não roubar’, são singelos corolários, e se par obter o que queres, o teu próximo te atrapalha, não o mates, ‘ama-o’! Como argumento Lacan apresenta o paradoxo de Epimênides, paradoxo este conhecido também como “o mentiroso” ou “o cretense”, segundo o qual se afirma o seguinte: 

 

    Epimênides é cretense e afirma 
    Que todos os cretenses mentem.
Se Epimênides é cretense e todos os cretenses mentem,  
então quando Epimênides afirma:
    Todos os cretenses mentem,
afirma uma proposição verdadeira. Portanto, 
Epimênides não mente quando afirma que todos  
os cretenses (incluindo Epimênides) mentem.
     Como conseqüência:
1. Epimênides mente se e só se não mente 
(isto é, diz a verdade). 
2. Epimênides não mente (isto é, diz a verdade), 
se e só se mente.

É possível que esta relação estruturante da lei com o desejo leve o sujeito a ver a realidade como estruturada, como estruturada e pronta.  Mas se há mentiras que levam à verdade, não podemos negar as mentiras que buscam ocultá-la 

Diria, enfim, que uma análise precisa passar pela destituição deste engano. E para possibilitar esta passagem, nenhum bem, “nenhum Wohl – como diz Lacan – que seja o nosso ou o do nosso próximo, deve entrar como tal na finalidade da ação moral”. E Lacan recorre à “Lei fundamental da razão pura prática”, de Kant, que reza: “Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer-te sempre como princípio de uma legislação universal”.  

Pareceu-me interessante que Lacan cita duas vezes a mesma frase, intermediada pela frase original de Kant, em alemão, e ele faz aí duas alterações: a primeira, é no objeto direto da oração, a máxima da tua vontade, “di Maxime deines Willens”, que na primeira citação ele chama de "ação", como que para dizer que a vontade, Willens, só interessa quando se transforma em ação, e a outra alteração é na tradução de allgemeine: Lacan não está de acordo, com toda a razão, em sua tradução por ‘universal’; estando mais próxima de ‘comum’, ele propõe que se traduza por “uma legislação que seja para todos”. Mas isto não implica em advogar uma interpretação que seja para todos, pois a interpretação não está aberta a todos os sentidos. Ao contrário, entendo esta proposta como sendo a de buscar uma proposição impessoal, algo que pudesse ser dito por todos ou por qualquer um, por qualquer um que considere ao grande Outro; uma proposição na qual não possa ser identificada a marca pessoal do analista enquanto sujeito desejante, pois é só assim que ele possibilitará o encontro do analisante com o real de seu desejo, o território do vazio.

 
 
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