Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

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AS VIAGENS DOS HOMENS
AS CONSEQUÊNCIAS DO FRACASSO*


Luiz-Olyntho Telles da Silva
Porto Alegre,
06 de novembro de 2004.



   W.J.M. Turner: Dido construindo Cartago, 1815.    
Pus meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos
para meu sonho naufragar.


CECÍLIA MEIRELLES

O que é passado é prólogo.

W. SHAKESPEARE

Rain drops keep falling on my head.

B. J. THOMAS


Senhoras e senhores

Viajar é preciso. É provável que não haja nada mais presente na vida dos homens do que as viagens. Conversando com um colega, dia desses, ele me dizia de sua preocupação com as viagens, cada vez mais perigosas, cada vez mais mortais. As pessoas saem para as estradas para se matarem, dizia-me ele. Acho que é verdade, pois, se não saem para se matarem, certamente saem para conviver com a morte. Trágico, mas verdadeiro!

Vou tentar falar-lhes disso e, claro, vou tentar falar disso desde este nosso cenário. Refiro-me a esta mesa à qual fui gentilmente convidado a participar. Uma mesa de poetas e psicanalistas.

Isso implica que devo falar-lhes da temeridade. Os poetas são os temerários que sempre andam na frente. Lacan, falando de Marguerite Duras, diz isso claramente: os poetas, os artistas em geral, andam sempre na frente.  E, depois, os homens de ciência vêm logo atrás – incluídos aí também os psicanalistas –, aproveitando os resultados desse enfrentamento na tentativa de clarear, de melhor dizer dos meandros de suas disciplinas. Assim, por exemplo, o físico Murray Gell-Mann que retira do capítulo XII do Finnegans Wake, de James Joyce, a palavra quark para com ela batizar uma partícula subatômica constituinte da matéria.

E se devo falar-lhes de temeridade, observem só como é interessante esta palavra: em geral, os temerários, os que praticam a temeridade, são conceituados pelos dicionários como aqueles que desconhecem o medo, audaciosos que cometem atos imprudentes. Mas, na minha opinião, não é bem assim que as coisas se passam. Vejam que tanto o substantivo temeridade como o adjetivo temerário começam pelo temor. Quer dizer, se os poetas andam na frente, na frente dos poetas temerários anda o temor. E, como todos os que temem, tomam lá, cada um, suas melhores providências para esconjurar esse medo. Quero dizer com isso que o poeta inegavelmente pergunta pelo que o aguarda na obscuridade do caminho, pergunta pela noite, pergunta pelo futuro. Feita a pergunta, nada mais lhe resta a não ser inventar uma resposta. Sim, inventar! E, claro, contar com a luz da manhã. Como dizia Gustav Mahler, O criador é um arqueiro que dispara na escuridão. E isso, asseguro-lhes, é o melhor que podemos fazer. O resultado das invenções são benéficos para seu autor e, em geral, importantes transcendências fantasmáticas para sua comunidade, algumas vezes para o mundo como um todo – deturpações à parte.

Quando o homem de Altamira, um artista rupestre, desenha os bisontes na parede da sua grande sala sendo mortos por suas azagaias, ele está pondo em ação sua invenção para esconjurar as dificuldades de seu caminho para o futuro. E agora pergunto: parece-lhes demasiado afirmar que se estamos aqui, hoje, é graças ao fato de alguém, quatorze mil anos atrás, ter visto valor em exorcizar o que ainda não aconteceu?

Recentemente, embora já há alguns anos, tive o privilégio de ler os originais de um romance de uma menina de doze anos. Nele, ela contava a história de uma mocinha que aos trezes anos foge de casa, tem uma paixão distante por um escritor mais velho, bem mais velho, e dorme na praia, na Bahia, de mãos dadas com um amigo, entre outras peripécias. Não preciso lhes dizer que estou comparando-a com o artista de Altamira. Mas, se ambos dizem de suas fantasias para com o futuro, posso lhes dizer que a jovem autora não fugiu de casa aos 13, nem aos 15; pelo contrário, vive muito bem com os pais e amigos, embora já não se possa negar sua grande independência. Suas inquietações não são diferentes das que aparecem em Collodi, Mark Twain, Nabokov e mesmo nas Aventuras de uma negrinha que procurava Deus, de Bernard Shaw. Estimo que ter escrito de modo dramatizado sobre suas fantasias deve tê-la ajudado a ser quem hoje é.

E isso é falar de viagens? Por que não? Talvez pudéssemos falar mesmo da viagem entre o e o jota. Pois não é interessante que viagem se escreva com e viajante com jota? Talvez me digam que para isso já seria preciso um pouco mais de maionese, não é mesmo? Enfim, o que é mesmo que define uma viagem? Ir de um lugar a outro. Basicamente é isso. Se vamos a pé, com o Grêmio, de balão através da África, com Júlio Verne desde Madagascar até sermos arrastados por um rinoceronte para dentro do Lago Vitória, de carroça, em direção ao oeste, de ônibus, junto com o destino, se nossa odisseia é pelos mares de Ítaca ou pelo espaço, com Kulbrick, com o May Flower ou com alucinógenos, etc., etc., etc., já será outra história. Afinal, como diz Lupicínio Rodrigues:
o pensamento parece uma coisa à toa,
mas como é que a gente voa
quando começa a pensar.
A verdade é que nós, brasileiros, assim como todos os americanos, temos uma história que começa com grandes viagens, seja a dos nômades que deram a volta desde a Ásia, passando pelo estreito de Behring  até as nossas plagas, seja a das grandes navegações de Vasco da Gama, Colombo e Cabral. Camões cantou as viagens dos portugueses. Vasco da Gama era o herói do momento, equiparado nos Lusíadas a Enéas. Colombo não começou descobrindo a América. Começou como grumete, e nas suas horas de folga lia o relato das viagens de Marco Pólo ao Oriente, nos fins do século XIII. Interessante que as grandes aventuras de Marco Pólo, iniciadas aos 17 anos de idade, talvez por ser filho de navegadores, terminam na prisão. Se lhes parece pouca a idade para viajar, lembremos que é com a mesma idade que Auguste de Saint-Hilaire viaja para o Brasil em busca de nossa flora. Era a idade, à época, em que se começava. Nas suas pesquisas de campo, Saint-Hilaire sofre um envenenamento com mel de Lechiguanas (uma vespa hoje mais conhecida como enxuí) e sua longa recuperação lhe dá muito tempo para pensar e organizar suas descobertas. Já as viagens de Marco Pólo levam-no, como veneziano, à prisão de Gênova. É aí que ele dita a seu companheiro de cela, Rustichello, as memórias de suas viagens. De modo que Colombo não ignora, de maneira nenhuma, as desventuras ocorridas em seu transcurso. Podemos dizer mesmo que os percalços das viagens aguçam sua curiosidade. O temor aparece intimamente relacionado ao desejo. Se depois Colombo imagina haver encontrado o Paraíso, isso só mostra o quanto as viagens e os sonhos andam juntos.

A carta de Caminha, revelando a Europa o dealbar de nossa terra, revela também uma imagem paradisíaca. Essa ideia de encontrar o paraíso não é rara: um amigo que voltou nesta semana da Chapada dos Guimarães, em Goiânia,  descreveu-me a mesma coisa: um Paraíso! E as queimadas que o cercam... um inferno.

Mas é isso, busca-se o Paraíso. Dê-se o nome que se der, Céu, Walhala, Campos Elíseos, busca-se o Paraíso. Os egípcios tinham mesmo um mapa para chegar lá. Não se enterrava um faraó sem que nas paredes da grande sala da pirâmide estivesse inscrito o Livro dos Mortos, no bem humorado dizer de Freud, o primeiro Baedecker, o primeiro guia de viagens.

Aproveito para justificar a chistosa viagem entre o e o jota. A etimologia de viagem nos remonta a viaticum, que dá para nós, em português, o conhecido viático, este farnel, a galinha com farofa que o viajante leva para aguentar a viagem. Mas viático é também o Sacramento da Eucaristia administrado aos enfermos impossibilitados de sair de casa. Isso me faz pensar que aos viajantes, os que saem de casa,  interessa-lhes cuidar não só da barriga, mas também da alma. É preciso, desde sempre, recomendarem-se aos bons espíritos. Não se pode sair de casa sem um bom viático!

Agamêmnon está em Áulis, pronto para partir contra Troia com sua frota, mas não há vento. Calcas, o adivinho de plantão  diz-lhe que para haver vento é preciso antes imolar sua filha Ifigênia em homenagem à Ártemis. Se com Cristo no barco tudo vai muito bem, sem a bênção dos deuses parece que nada é possível. Entre as viagens desses gregos - que para alguns não passaram de delinquentes -, destaca-se a de Ulisses. A viagem de Ulisses torna-se o modelo d’A viagem. Seja o interminável retorno de Odisseu, como não deixava de suspirar Penélope, conforme nos conta Homero no século IX a.C., em sua Odisseia, seja no passeio de um dia de Leopold Bloom pela cidade de Dublin, em 16 de junho de 1904, no romance do escritor irlandês James Joyce.

Interessante notar que na mesma época em que Ulisses passeava pelo Mediterrâneo, entre 1250 e 1230 a.C., Moisés vagava pelo deserto, não muito distante daí, em busca da prometida Canaã. Se ele fracassa ante as portas, sabemos, contudo, do que resultou seu Êxodo para todo um povo. Certamente que a viagem de Ulisses também não é plena de sucesso. A Odisseia, a história de Odisseu, é plena de dificuldades: as sereias, Circe, Polifemo, etc. E se ele escapa de todas as dificuldades e não vai para a cadeia, como Marco Pólo, ao chegar em casa se atormenta com a dúvida a respeito da fidelidade de sua mulher. Calipso o detivera tempo demais! Os insucessos, os tormentos, são sempre os melhores argumentos da literatura. O happy end é apenas uma de suas tendências, correlata ao Paraíso. Se temos de morrer, que seja da melhor maneira. Não é o que diz Shakespeare? Bem está o que bem acaba.

A literatura sobre viagens atingiu um grau tal de importância e divulgação no século XVII, que Jonathan Swift escreveu o seu famoso Viagens de Gulliver para ridicularizá-las. Mas a verdade é que, enquanto mostra os homens ora vistos como muito pequenos, ora muito grandes, ora como imortais ou vivendo em uma comunidade formada apenas de intelectuais, ou, ainda, quando os compara a cavalos dotados de razão, que tratam os yahoos como cachorros, ele, fazendo uso desse mesmo topos, vai dizendo das diversas facetas do homem, abrindo caminho para uma visão do interior humano.

Esse sempre me pareceu o aspecto mais importante da literatura de viagens, a possibilidade de melhor conhecer o homem, pois, afinal, o que ele nos conta deve ser o que tem dentro de si. As viagens obrigam o homem a se reorganizar internamente. Depois de viver dez anos fora dos Estados Unidos, Henry Miller passa um certo tempo viajando de carro pelo país. Inconformado com o que vê, publica Air-Conditioned Nightmare para poder conviver com o pesadelo.

Em viagem, o homem está sempre exposto, mais vulnerável, e esta sua característica, de vulnerabilidade aos imprevistos, às intempéries, sempre me deixa muito comovido. Por isso pensei em lhes falar de Shakespeare, pois ele é mestre em colocar o homem frente ao imprevisto. Cheguei a pensar em lhes falar da comédia O Mercador de Veneza, pois sempre desconfiei que algo deve ter a ver com Marco Pólo. Poderia falar-lhes de seu grande personagem, Shylock, o judeu avarento que nos ajuda a pensar sobre os custos de uma viagem. Sim, viajar é preciso, mas quanto custa?  

Meu grande sonho - perdidas as ilusões, já posso lhes confessar -, era fazer uma circunvolução do Mediterrâneo junto com meus filhos. Queria ver com eles os lugares por onde passou Europa em sua fuga de Zeus; fazer, de barco, a travessia que ela fez a nado; cruzar o Estreito de Bósforo, que outra coisa não quer dizer que passagem de vaca. Foi por aí que Europa passou de volta à Ásia Menor. Aliás, por falar em passagem de vaca, Oxford, na Inglaterra, onde está a grande Universidade, quer dizer a mesma coisa. Começamos por seguir os animais. Nós os adorávamos enquanto a ciência não nos ajudava a entendê-los. O touro, o grande El, gerador do hebraico Eli, foi adorado por vários povos da Antiguidade, pelo menos até serem proibidos por Moisés. Mas como as coisas não deixam de existir de uma hora para outra, ainda mais por decreto, há quem veja nos encaracolados cabelos do Moisés esculpido por Miguel Ângelo uma reminiscência dos adorados chifres, mesmo embora Freud não os tenha visto.  Hoje não mais adoramos esses animais, nós os tememos: de objetos adorados passaram a objetos fóbicos. A primeira letra do alfabeto fenício, o Aleph, retrata uma cabeça de vaca. Se virarmos o nosso A maiúsculo de cabeça para baixo, ainda poderemos ver aí a antiga cabeça de vaca inspiradora do Aleph. Europa mediante. Cabeza de Vaca, lembremos ainda, é também o nome de um grande viajante europeu andando pelas Américas logo das descobertas.

As viagens são mesmo perigosas. Europa não voltava para casa, e seu pai, Agenor, preocupado, envia os outros filhos à sua procura. Entre eles, Cadmo que, tais quais os outros dois irmãos, já não consegue encontrar a irmã e termina, como consequência de seu fracasso, por fundar a cidade de Tebas. Descendente de Cadmo é Édipo, cuja tragédia servirá a Freud como modelo das relações entre pais e filhos, pois ele vê nos mitos vestígios distorcidos de fantasias plenas de desejos de nações inteiras.1

Essas são algumas das coisas que Shylock me faz pensar quando pede como ágio uma libra de carne do Mercador de Veneza. Mas a peça que escolhi para lhes falar foi A Tempestade, a última escrita apenas por Shakespeare, antes de associar-se a John Fletcher. Classificam-na hoje como romance. Escolhi-a por diversos motivos. Um deles, para não dizer que foi o primeiro, foi o fato de Shakespeare colocar seus personagens na chuva e, vocês sabem, quem vai à chuva é para se molhar! Quero crer que a tempestade é um recurso utilizado para provocar a vulnerabilidade dos personagens. Outro motivo de minha escolha pode ter sido o fato de que recentemente me deparei, absolutamente por acaso, com um outro texto que provavelmente serviu de inspiração ao Bardo. E por fim, porque nesta comparação entre os textos sou levado a um terceiro texto que muito me surpreende por sua clareza ao mostrar o homem em busca de si mesmo, debatendo-se com a morte.

Antes de seguir, porém, um esclarecimento. Não sou um especialista em Shakespeare, como, de resto, não sou um especialista em nada. A Psicanálise não é, a despeito de muitos assim pensarem, não é, repito, uma especialidade. O compromisso do psicanalista é o de ler e analisar aquilo que se lhe apresenta e esta é a tarefa a que me proponho. No livro que, recentemente, publiquei, com o singelo título de Leituras, é a isso que me proponho. Ler aquilo que se me apresenta desde esse viés. O fato de ele estar catalogado como Crítica Literária não é de minha responsabilidade. Digo-lhes isso porque Harold Bloom, sim, é um crítico e especialista em Shakespeare. É dele que tomo as referências de classificação da peça A Tempestade como um romance e O Mercador de Veneza como uma comédia. Outra coisa a me chamar a atenção é que Bloom pouco sai de Shakespeare na busca de fundamentos para suas peças. Assim, para fundamentar o tema de A Tempestade, ele recorre praticamente apenas ao Doutor Fausto, de Marlowe. Pois bem, embora os senhores provavelmente já conheçam a peça, conto-lhes brevemente seu enredo para maquiavelicamente justificar meus fins.

Viajam em um navio o Rei de Nápoles com sua comitiva, irmão, filho e conselheiro, mais Antônio que se fez Duque de Milão usurpando o ducado de seu irmão quando, de repente, o barco é sacudido por uma grande tempestade e afunda. Logo adiante fica claro para o espectador que o que parecia um terrível naufrágio não passou de um lance de mágica ordenado por Próspero, o verdadeiro Duque de Milão, exilado numa ilha em que faz chegar suavemente o navio com a eminente tripulação. Os náufragos, contudo, não se dão conta e agradecem aos céus por sua rara sorte.


A grande mágica é possível graças à interferência de Ariel, um Espírito etéreo sob as ordens de Próspero. É aí que Bloom o compara com o Fausto que vende sua alma ao diabo para ter controle sobre as forças da natureza. Exilado nessa ilha, em companhia de sua filha Miranda, Próspero se dedica, como Fausto, aos estudos esotéricos. O que ele busca com isso é aproximar a filha de Ferdinando, filho do Rei de Nápoles, casá-los e assim retomar o ducado de Milão. Isso tudo com a ajuda de Ariel e Caliban, um monstrengo filho de uma bruxa.
 
O outro texto com o qual me deparei, quase ao acaso, foi a Eneida de Virgílio.  O vínculo entre um e outro me foi de certo modo assoprado por minha mulher, quando examinávamos, admirados, no nosso MARGS (Museu de Artes do Rio Grande do Sul - Ado Malagoli), as maravilhosas tapeçarias do Petit Palais, de Paris, e nos deparamos com o deslumbrante Dido e Enéas surpreendidos pela tempestade. Foi aí, quando Maria da Glória chamou minha atenção para a delicadeza das gotas de chuva, as poéticas rain drops, que as tempestades começaram a se aproximar.

A tempestade que obriga a Rainha Dido e Enéas a se abrigarem em uma caverna foi obra de Juno, protetora de Dido, com o consentimento de Vênus - a Afrodite grega -, mãe de Enéas. Como na Eneida, em A tempestade, Juno também vem abençoar o casal reunido pelo temporal. Ela está acompanhada nessa bênção de sua irmã Ceres, que outro personagem não é senão uma metamorfose de Ariel.

Relendo a Eneida, reparei que as tempestades estão aí sempre presentes, levando os desventurados companheiros de Enéas de um lugar para outro em suas casquinhas de noz. Prófugos da derrotada Ilion e na busca de concretizar o grande vaticínio de alcançar a Hespéria e conquistar a Itália, Enéas vagueia com seu pai de um lugar para outro até que o vaticínio seja mais claramente entendido. Enquanto não entendem corretamente o recado divino, eles vão fundando cidades, mais ou menos como o movimento conhecido por nós como Entradas e Bandeiras: a cada vez que a Entrada precisava demorar-se um pouco mais no acampamento, esperando o tempo necessário para plantar e colher, aí ficava uma pequena povoação. Andam assim até aportarem na cidade de Tiro, onde reina a Rainha Dido. É aí que Vênus, preocupada com a segurança de seu filho Enéas, pede ao outro filho, Cupido - este que se vê multiplicado na tapeçaria atribuída a M.I. Corneille, e que se metamorfoseia em Iulo, o filho de Enéas -, para melhor inspirar em Dido o fogo secreto do desejo.  Preocupações maternas à parte, é por demais evidente aqui o gosto da mãe de Enéas em ver seu neto confundido com seu filho, como se se tratasse de um filho comum.

Enquanto em A Tempestade é Ariel que move os ventos, ao comando de Próspero, na Eneida é o próprio Zéfiro a provocar a tempestade, comandado por Juno. São muitos os elementos comuns. Em determinado momento de A tempestade, Antônio, o usurpador do Duque de Milão, e Sebastião, o irmão do Rei de Nápoles, falam - ainda que chistosamente - da viúva Dido e do viúvo Enéas. E por quê? – Vejo aí a assinatura de confissão de Shakespeare.

Embora Bloom veja em A tempestade um romance, não vejo porque não entendê-la também como uma comédia! Se a relação da Tragédia clássica com a Comédia tem a ver com a morte, na medida em que na tragédia grega a morte é para sempre e na Comédia, na Divina Comédia de Dante Alighieri, por exemplo, é apenas um outro momento da vida, então em A tempestade temos exatamente isto: o que parecia morte não era exatamente morte, apenas uma... comédia. E, depois, podíamos pensar também que assim como Virgílio escreve a Eneida em busca de uma nobre genealogia para os Césares de Roma (é de Iulo que irá sair o título de Júlio), Próspero quer também, através de Ferdinando, uma genealogia nobre para sua descendência. Afinal estamos na Itália, o país prometido a Enéas, o que fracassou na defesa de Ilion. Fracassado na guerra de Troia Enéas se torna, com Virgílio, a origem genealógica do ascendente império romano.

É disso que Freud nos fala quando aborda a questão do romance familiar. Através desse fantasma, alude a uma tendência muito comum na puberdade, a de imaginar-se filho adotivo, e que seus verdadeiros pais, na verdade reis e rainhas, tiveram de abandoná-lo pelos mais diversos motivos. Mas não posso concluir sem mencionar uma derradeira característica presente tanto na Eneida quanto em A Tempestade, aliás a mesma característica presente no terceiro texto que serei levado a explorar. Refiro-me à importância dada aos sonhos. Na Eneida eles aparecem a cada tanto e sempre indicam presságios. Em A Tempestade, em determinado momento da Cena I do Quarto Ato, Próspero diz que Nós somos esta matéria de que se fabricam os sonhos e, em seguida, acrescenta: Nossas vidas pequenas têm por acabamento o sono, este sono que em Hamlet é uma alternativa para a morte.

Pois foi esse recurso ao sonho que me deixou boquiaberto quando me encontrei com Gilgamesh, o Rei de Uruk. Trata-se de um épico sumério, anônimo, escrito há cerca de cinco mil anos e considerado o texto mais antigo de nossa civilização. A versão que chegou até nós foi encontrada na biblioteca de Assurbanípal que mandou traduzi-la para o assírio. Ela ocupa uma dúzia de plaquetas de argila e está cunhada com caracteres cuneiformes.

A história se passa no espaço entre duas viagens. Gilgamesh, assim como Henry Miller, acabara de voltar de uma grande viagem e está meio pra baixo. Ele tem então um sonho e o leva para ser interpretado por sua mãe, a qual, do mesmo modo que a mãe de Enéas, é também uma deusa. Na sua interpretação, ela diz nada menos que isto: que ele vai encontrar um companheiro, muito forte, e que irá amá-lo como a uma mulher. E assim vai andando a história. Nos momentos cruciais aparece um sonho e sua respectiva interpretação. É com esse recurso técnico que seu autor, cinco mil anos atrás, consegue levar adiante sua história. E o sonho se realiza: Gilgamesh encontra seu amigo Enkidu, vivem juntos muitas aventuras até que Enkidu morre. No seu enterro, Gilgamesh, dolorido, faz uma oração fúnebre que bem poderia ter inspirado aquele comovido e comovente discurso que ouvimos em Quatro casamentos e um funeral. Inconformado com a morte, Gilgamesh não quer morrer e sai em busca da vida eterna. Nessa busca descobre que os escolhidos sobreviventes do dilúvio haviam se tornado imortais e detinham o conhecimento da vida eterna. Dando provas de imensa coragem e denodo, Gilgamesh chega até Utnapishtim, o Longínquo, de quem recebe este segredo dos deuses: para viver eternamente, seria preciso colher uma planta que vive nas profundezas, sob a água, uma planta que machucava a mão de quem a pegasse, e depois tomar uma espécie de chá feito com ela. Gilgamesh fez mais este impossível, apanhou-a e, em seu regresso, num momento de vacilação, entra em cena uma cobra que a come, troca de pele na mesma hora e sai imediatamente de cena. Depois disso, só restou a Gilgamesh morrer.

            Obrigado.


*    Apresentado na Feira do Livro de Porto Alegre, 06 de novembro de 2004.
FORTUNA CRÍTICA:
Dulcinea Santos:
Li A Viagem dos Homens e acho muito bacana seu modo de escrever correndo pelos meandros da lógica poética! Da temeridade ao temor à obscuridade e à escuridão anunciando a claridade da manhã, e aí o homem de Altamira e o sonho da menina, e uma viagem alvissareira pelas letras  G e J, de Je, o sujeito viajante, e muitas viagens pela Literatura, e vem o G à cura da alma e As viagens de G.ulliver (comentário traçado com exímia concisão), as peripécias da vida. Desde a temeridade ao imprevisto com Shakespeare e aí o sonho da viagem com os filhos e o que teria sensível acento nesse percurso: Bósforo, Europa, e a evocação à vaca fornece uma chave: há na palavra o fonema /c/, uma oclusiva velar surda, o avesso do /g/, uma oclusiva velar sonora, que assim seguiriam seu curso, a viagem: vaca » vaga » vacância » El, gerador dos hebraicos, o touro sagrado. Adoração e temor. Uma viagem perigosa via Shakespeare: Quero crer que a tempestade é um recurso utilizado para provocar a vulnerabilidade dos personagens. Outro motivo de minha escolha pode ter sido o fato de que recentemente me deparei, absolutamente por acaso, com um outro texto que provavelmente tenha servido de inspiração ao Bardo. E por fim, porque nesta comparação entre os textos sou levado a um terceiro texto que muito me surpreende por sua clareza ao mostrar o homem em busca de si mesmo, debatendo-se com a morte. E vem o G, em Glória, referindo a delicadeza poética das gotas da chuva que caem seguida de J.uno abençoando o casal reunido pela tempestade, e vem Enéas vagueando com seu pai de um lugar para outro até que o vaticínio seja mais claramente entendido com Gilgamesh, o Rei de Uruk, e o sonho se realiza: G.ilgamesh chega até Utnapishtim, o Longínquo, de quem recebe o segredo dos deuses. Assim, esquadrinhando os fatos, investigando as palavras, tentando delas retirar aquilo sobre o qual discorrem, esse é seu jeito de escrever do qual muito gosto.
Recife, 24 de novembro de 2010.


  
























































































































































1. FREUD, S. Escritores criativos e devaneios (1907). Rio de Janeiro, Imago, Ed. Std. Brás. Das Obras Psicológicas Completas de S. Freud., vol. IX, 1976, p. 157.















































































































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