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TRÊS (OU QUATRO) RATINHOS CEGOS
Luiz-Olyntho
Telles da Silva
Abril/20224
Meun est propositum
in taberna mori.
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(Carmina Burana,
Anônimo do Sec. XI)
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Foi há sete anos atrás, lembro bem a data, em uma viagem de férias pelo Caribe,
no navio Norwegian Viva, visitando Tortola, Santa Lúcia e Antígua, que conheci
Felipe de Almeida, um simpático senhor de meia idade. A aproximação entre
nós aconteceu ao final do primeiro dia, quando minha esposa e eu fomos ao
bar para pedir uma taça de vinho, preparando-nos para assistir ao pôr do
sol, e ele já estava ali, pelo mesmo motivo. Talvez pela simpatia desencadeada
por termos sidos dos primeiros no lounge, logo erguemos um primeiro
brinde, enquanto o barco se afastava de San Juan de Porto Rico. Em seguida,
como pessoas bem-educadas, nos apresentamos e, uma palavra puxando outra,
o Dr. Almeida, advogado no interior de São Paulo, revelou-se um grande conversador.
Acho que, depois disso, nos encontramos praticamente em todos os finais de
tarde durante aquele passeio, pois nossas esposas, descobrindo muitas coisas
em comum, também se tornaram amigas. Homem de muita experiência na vida e
também de muitas leituras, era notório seu prazer em me contar suas histórias.
E eu não me cansava de ouvi-las.
Deve ter sido no quinto dia de viagem, depois de, dia após dia, ter contado
uma quantas histórias, quando, a propósito dos comentários sobre a boa qualidade
dos vinhos servidos a bordo, especialmente de sua grande coleção de Bordeaux,
e também da internacional recomendação de beber com moderação, o Dr. Almeida
se lembrou de alguns personagens de sua juventude, os quais, digamos assim,
não deram ouvidos à dita recomendação. Não sei dizer bem como foi que ordenou
sua história e talvez tenha sido uma criação espontânea, quem sabe priorizando
o que tinha importância para si mesmo.
Primeiro contou-me sobre Ingo, dizendo tê-lo conhecido de longe, só de longe.
E logo, recostado que estava naquelas confortáveis chaises longues,
por vezes levantando o cálice para admirar a transparência do vinho, continuou,
parecendo, em alguns momentos, como se falasse para si mesmo.
Ingo e eu fomos colegas no terceiro ano ginasial, disse-me ele. Frequentávamos
a mesma sala, com os mesmos professores e os mesmos colegas, mas nunca nos
falamos. Aliás, nunca soube que ele falasse com qualquer um de nós. Lembro-me
dele, naquele ano, e no seguinte não o vimos mais. Recordo-me de Ingo como
sendo o mais velho de todos nós que vínhamos acompanhando a turma desde o
início do ginásio, e também o mais alto, como se estivesse vestido sempre
com sua capa de chuva, fora da qual só aparecia sua cabeça, os cabelos loiros
revoltos, um tanto encaracolados, e o seu olhar baço; bêbado. Não que ele
viesse sempre embriagado para a aula, nem que estivesse sempre com a capa,
não! Mas essa foi a impressão que ficou para mim. As capas de chuva eram
muito comuns naqueles tempos. A minha, por exemplo, acredito que, como a
da maioria, era fabricada pela Renner, de uma lã azul-noite, comprida até
a metade das canelas. A dele, contudo, era mais comprida ainda: ia até aos
pés, lembrando, em parte, a capa de chuva usada pelos cavaleiros; a dele
era preta e tinha um forro, também de lã, vermelho, e fechava, na gola, com
um botão e uma corrente, ambos de prata. Era muito bonita! – exclamou, como
que tomado pelas cores criadas no horizonte ao entardecer.
E Ingo também não era feio! – continuou ele. Tinha um tipo alemão bem-marcado,
mas feio não, dizia a voz corrente. Falavam sim é que ele era bêbado! Alguém
o vira caído na rua, em um dia de chuva, e outro em um dia sem chuva. De
resto, sabíamos pouco. Como nós, vinha de outra cidade para estudar. Digo
nós para me referir aos internos no colégio, pois ele não era; e nós não
conhecíamos seu endereço, se morava com algum tio, com algum parente ou em
uma pensão. Embora nós, quero dizer, a maioria de nós, ainda fôssemos menores,
com nossos doze-quatorze anos, ele já era maior, o suficiente para morar
sozinho. Quando sóbrio, chamava nossa atenção por sua cara meio boba, meio
irônica, com um ar de superioridade que não parecia convencer ninguém, e
por estar sempre chegando tarde em aula, sem nenhuma desculpa. No ano seguinte,
ao voltarmos das férias para completar o ginásio – prosseguiu –, não me lembro
de ninguém ter perguntado por Ingo. E, embora não o tenha esquecido, nunca
mais ouvi falar dele. Agora, quando penso nele, é para me perguntar por que
era assim, tão desapegado de si mesmo. Naqueles dias, contudo, não acredito
tenha feito essa pergunta, nem para mim mesmo, nem para nenhum dos outros
colegas, nem para ninguém. Nunca antes havia relacionado seu jeito de ser
com sua história, porque, é claro, ele deveria ter uma história. E a verdade
– isso é o que me surpreende! – é que eu teria condições de fazer essa relação,
pois, antes dele, já havia conhecido outro bêbado e relacionado sua condição
com sua vida.
Do outro, desse sobre quem quero contar-lhe agora, acho que nunca soube seu
nome verdadeiro, ou então não me lembro. Era nosso professor de latim, e,
por galhofa (pelo menos sempre entendi assim), nos referíamos a ele como
Profe Bürste, acentuando a pronúncia do trema. Talvez tivesse sido o próprio
Ingo a dar-lhe esse apelido, mas não estou certo. Em aula, ele era reconhecido
e chamado de Professor, com todas as letras, mas, fora de suas vistas, passava
a ser o Profe Bürste, e sempre atribuí o apodo à conjugação de uma irônica
antonomásia – construída a partir do aspecto escovinha de seus cabelos em
crew cut –, com a forçada acentuação do trema para fazer a
palavra soar, em nossa pronúncia maldosa, como bosta. Era suíço de nascimento,
e, embora falasse um bom português, possivelmente por conhecer o latim, seu
sotaque traía suas origens no leste da Suíça, onde o alemão era a língua
mais falada. E devo ter ouvido, alguma vez, que ele ainda tinha família em
St. Gall, próxima do lago Constança, cuja história eu conhecera em uma aula
dominical dedicada a Carlos Magno. Segundo uma lenda, o Imperador terminara
seus dias ligado a esse lago por força de um anel mágico. Mas, se tirarmos
fora os traços de origem, entre Ingo e o Profe Bürste não havia mais nada
em comum. Seu olhar, por exemplo, de modo geral, era vivo. Guardo a lembrança
de apenas uma vez tê-lo visto chegar em aula com um aspecto tresnoitado,
mas seus passeios etílicos eram bem conhecidos. Alguns colegas externos já
o haviam visto caminhando em ziguezague por efeito da bebida. Suas roupas,
mesmo sendo de qualidade, eram desleixadas, e eu observei, em um de seus
casacos, um cotovelo puído. Atribuíamos isso, nos seus quarenta e cinco,
cinquenta anos, ao seu decidido estado celibatário. Sua nostalgia, diziam,
era pela família deixada na Europa. Quando tocavam no assunto, eu o imaginava
– como escutara dizer de Carlos Magno –, sentado em alguma varanda, ele talvez
segurando na mão o anel de um noivado desfeito, e o olhar perdido no Lago
Constança.
Agora, isso de tratar os outros por apelidos não era uma exclusividade nossa.
O Profe Bürste também nos tratava assim. A mim, pelo menos, ele imputara
um outro nome; chamava-me Petiço, e sempre atribuí isso ao meu tamanho. Se
eu não era o menor da turma, por certo, naqueles dias, era um dos menores;
e agora, pensando bem, talvez me tratasse assim por ver em mim um filhote
ainda xucro, um cabeça dura. Ah! Que difícil a compreensão daqueles casos
todos: genitivo, dativo, nominativo, etc., sem falar das declinações; e da
terceira, então, com todas aquelas exceções nos sufixos. Não foi à toa que
nos exames finais tenha ficado em segunda época (eu e mais uns quantos),
e por isso perdi as férias de verão inteiras decorando as catilinárias. Foi
só anos mais tarde, bem mais tarde, que pude compreender a importância do
latim para melhor conhecer o português. Afinal, o latim é como o genitivo
do português, seu genitor, seu pai. É preciso compreender as origens de nossa
língua para não sermos compreendidos no gênero dos psitacídeos. Mas o latim,
naquela época, era a cara do Profe Bürste, e, para nós, não passava disto:
letras bêbadas.
Antes de continuar, voltando-se para mim, perguntou-me se não estava me importunando
com tantos detalhes. Mas não, de modo algum, respondi-lhe. E ele prosseguiu,
dizendo ter tomado conhecimento do terceiro ratinho pouco tempo depois. Foi
em um Natal – disse-me ele –, por volta de meus quinze anos. Meus pais haviam
ido passar a Noite de Natal com uns parentes e eu não quis ir. Não os conhecia
bem, não tinha intimidade com eles, e preferi ficar com uns amigos. Era costume
virem todos para minha casa. Era nosso ponto de encontro. Gostava tanto de
estar com eles que nem estranhei não estivessem comemorando o Natal com seus
pais. Percebo agora como éramos todos meio largados! E assim, tão logo viram
meus pais saírem de casa, vieram, e fomos logo assaltar a adega da casa que,
para minha surpresa, estava vazia, ou quase. Umas poucas cervejas, todas
quentes; duas garrafas de vinho tinto; um conhaque; uma garrafa de vermute,
tipo italiano, rosso, e outra de gim, ainda lacrada. Pois colocamos
as cervejas no congelador da Kelvinator e atacamos os vinhos, seguindo para
o vermute, italiano vero, tutti bona gente, e ríamos sob efeito
daqueles licores proibidos. Sedentos como estávamos, o rosso não resistiu
muito, motivo suficiente para enfrentarmos o conhaque e o gim. Passava da
meia-noite quando, cinco garrafas vencidas, nos lembramos das cervejas. Haviam
congelado e uma delas forçara a tampinha esparramando seu conteúdo pela caixa
do freezer. Com as outras, já não tomei conhecimento. Com aquela mistura
toda, foi o álcool a tomar conta de mim, repentinamente, e a imagem que me
vem é a dos amigos pondo minha cabeça embaixo do chuveiro. Depois disso,
devo ter desmaiado. Quando meus pais chegaram, na madrugada, encontraram-me
na cama, dormindo, com a cabeça sobre uma poça de vômito. Mais tarde, quando
nos encontramos na mesa, para o café da manhã, papai estava rindo com mamãe
e contando para ela minha explicação para o vômito: havia sido um pepino
estragado. Imagine só! Mas o gracejo logo passou. Do Natal também traziam
a notícia de que o primo Pedro havia morrido.
Bem, é preciso dizer que Pedro já não era nosso primo há tempos – explicou,
como se se desculpasse. Fora casado com uma sobrinha de minha mãe, de quem
todos nós gostávamos muito. Foi esse o motivo do apego de meus pais a ele.
Casaram-se muito jovens, ela professora de um Grupo Escolar e ele médico
com um emprego garantido no Posto de Saúde. Tudo começou muito bem e chegaram
a ter três filhos, mas o último já nasceu sindrômico e não houve quem não
atribuísse a causa às bebedeiras do pai. Bebia até cair, e isso, no começo,
era só nos fins de semana. Mas foi se tornando cada vez mais frequente, mais
frequente, até Daniela, minha prima, não aguentar mais, e se separarem. Fazia
pouco mais de um ano da separação quando Pedro morreu, e uns seis meses que
não ia mais ao trabalho. Sobrevivia de umas poucas economias e da ajuda de
Dani, que chegara ao ponto de pagar para não se aproximar dos filhos.
Agora Pedro estava morto. Fora encontrado caído, sem vida, em uma sarjeta,
ao lado da rua onde ficava o Posto de Saúde.
Acredite! Papai não poderia ter encontrado hora melhor para contar sua história.
Estávamos sentados à mesa da cozinha, em frente à grande janela de grades
cobertas pelas glicínias que mamãe adorava, e o ritmo de sua narrativa –
relembrando a vida desse sobrinho e primo postiço, de quem todos gostavam,
e até eu, mesmo nunca o tendo visto de perto, também tinha minha simpatia
por ele –, era propício ao recolhimento. Era como se a luz filtrada pelas
ternas flores iluminasse o interior de cada um. Até minha irmãzinha, de cinco
anos, em geral um azougue, estava quietinha, sorvendo aos poucos seu chocolate
quente, ouvindo a história contada por papai. Aquelas crianças teriam de
viver sem o pai e, o pior: teriam dele uma lembrança tão triste.
Quando papai fez uma pausa, mamãe propôs que fizéssemos uma oração, que rezássemos
um Pai Nosso por sua alma. E eu, ainda sentindo na boca aquele gosto de cabo
de guarda-chuva, pensei com meus botões: por mim, bem que poderiam rezar
pelo menos uma Ave Maria.
E foi a minha vez de, agradecendo ao Dr Almeida por sua história, fazer o
sinal da cruz com o cálice sobre o peito, e dizer que já era hora de irmos
nos preparar para o jantar.
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NorwegianViva
Nesta segunda edição
todos os contos foram reescritos
e estão conforme ao novo
Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa,
e acrescidos de comentários críticos.
Os interessados podem adquiri-lo
junto a Editora Casa Vinte e Nove
editoracasa29@gmail.com
ou
com o autor
lots@uol.com.br.
FORTUNA CRÍTICA
Tão gostosa de ler essa narrativa leve, solta, tipificando
bem cada um dos ratinhos que roubava as cenas com sua bebedeira. Ingo encoberto
com sua capa, lembrando Gógol, em O Capote; tão desapegado de si mesmo,
alienado, chegando atrasado na aula, sem dar justificação nenhuma. O Profe.
Bürste ensinando latim aos púberes não preparados para compreender a função
prática dessa disciplina abstrata, entediante, uma situação comum, vivida
pelos estudantes, revelando, por vezes, a dificuldade do professor em apontar
a importância prática da teoria; nostálgico, supostamente amoroso, solitário,
é uma figura típicamente romântica; seu apelido revela a maldosa face da
juventude despreocupada, irreverente. E Pedro? Pedro é o ratinho que rouba
a cena para escancarar a tragédia causada pela bebederia. Mas tem mais:
há o quarto ratinho, o que está ébrio de referta memória narrando as histórias.
O final está ótimo: dá um salto no tempo!
DULCINEA SANTOS
Crítica Literária
Li tua narrativa com grande admiração. Lembrou-me
o Maugham de "29 histórias".
Muito bom.
LUIS DILL
Escritor
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