“Freud, um mentiroso?”
Critérios de verdade na Psicanálise
Por
Luiz-Olyntho Telles da Silva
 
 
sfinx
Sfinx Fenícia
 
    Lügen haben kurze Beine.
    Ditado popular.    

    Minto.
    Paradoxo “O cretense”.

    Ex falso sequitur quod libet.
    Adágio escolástico.

    O que se expulsa pela porta volta pela janela.
    Ditado Popular.

     
    [...] s’i’odo il vero,
    sanza tema d’infamia ti rispondo.*
    T. S. ELIOT, The Love Song of J. Alfred Prufrock
           
           Senhoras e Senhores
 
          Estamos aqui para discutir os critérios de verdade na Psicanálise. E esta proposta foi provocada pelo importante artigo[i] do respeitado Historiador Décio Freitas. Classifico-o como importante pela simples razão – e existem outras – de ter conseguido que nos importássemos com ele. 
          A resposta ao artigo[ii], publicada uma semana mais tarde por Luiz Ernesto Cabral Pellanda, no mesmo jornal, interpretou-o, a meu entender, como um ataque a Freud, ergo, à Psicanálise e aos psicanalistas. Alguns colegas de minhas relações mais próximas também assim o interpretaram. É verdade que eu mesmo não posso negar, no citado artigo, essa aparência de ataque, essa aparência de descrédito. 
          O artigo de Décio Freitas tem começo, meio e fim. Começa com algumas premissas, fornece alguns argumentos e tece uma conclusão, quer dizer: tem pé e cabeça. Embora seu último parágrafo pareça concluir com a salvação do condenado Freud através da cândida leitura de Lacan, é possível que o que ele queira mesmo é matar dois coelhos com uma só cajadada. Os senhores dirão. 
          Minha intensão é deter-me na análise dos argumentos do artigo, mas, para isso, é preciso antes tomar em conta sua premissa, esta que fala do iconoclasta ajuste de contas de uma época histórica com a época pretérita. O primeiro ajuste reduziu Marx a cacos, nos conta o Décio Freitas. Pois bem, com a ressalva de que não sou especialista em Marx, quero lhes contar que outro dia escutei uma leitura de um jovem Economista, onde ele dizia que o Capital pode ser lido como um elogio ao Capitalismo e é possível que essa leitura só seja possível a partir dos cacos, dos restos. Isto sim o digo desde o meu campo. De modo que não está tão mal ser reduzido a cacos. O destino do que nasce é a corrupção. O novo nasce do apodrecido. Nada dura para sempre. Nem a Academia foi eterna. Já o ajuste com Freud, é preciso lembrar, esse não esperou por uma nova época, tendo começado em seu próprio tempo que nunca absorveu completamente a revolução proporcionada pelo descentramento da razão. 
          O segundo parágrafo do artigo é dedicado ao esclarecimento do método de trabalho, do método de trabalho de um historiador: faz uma pesquisa de campo, no caso a reunião de um determinado número de textos de um determinado assunto, e oferece sua versão. É assim que temos a história, se me perdoam a simplicidade. Freud, aliás, estava perfeitamente de acordo com isso a ponto mesmo de tomar o historiador como modelo do analisante: do mesmo modo que a história da humanidade, a história de um analisante é o que ele diz que é. Estarão lembrados da Conferência com que Freud introduz suas primeiras Vorlesungen, suas primeiras Conferências de Introdução à Psicanálise, em 1915. Ele pergunta aí que crédito se poderia dar ao conferencista que falasse sobre a vida de Alexandre Magno, acrescentando que a situação deste conferencista pareceria ser ainda mais desfavorável do que no caso da psicanálise, pois o professor de história teve tanta participação nas campanhas de Alexandre quanto os senhores. E Freud agrega: O psicanalista pelo menos reporta coisas nas quais ele próprio tomou parte.[1]  Freud está falando do Psicanalista enquanto conferencista, enquanto alguém que dá conta de seu saber. Lacan, Jacques Lacan, eu o menciono agora, diz que o psicanalista fala sempre desde o lugar de analisante; por isto tomo as palavras de Freud também como as de um analisante. 

          E é aí, nas palavras do analista, tomado como analisante também pelo historiador, que se concentram o terceiro e o quarto parágrafo dos cinco que perfazem o artigo. 

          Suponho que seja aqui que esteja concentrado o ataque! Mesmo porque o adjetivo mendaz, aplicado a Freud, não parece estar escolhido ao acaso. A fraude freudiana é um mendáculo que o condena aos quintos dos infernos; lembram que era nos círculos mais inferiores do Inferno que Dante situava a fraude: é ao final do sétimo círculo que Virgílio invoca monstro Gerión, representante da fraude, para, sobre suas costas, visitarem o oitavo círculo. 
          O Dr. Pellanda tem toda a razão quando lembra a recomendação de Freud quanto ao tratamento que se deve dar a ataques desse tipo: são tão ingênuos que não merecem resposta. Mas nem por ser ingênuos são menos importantes e também não se os pode generalizar. Embora eu conheça um pouco de Israel, confesso que não conheço o citado Israëls e nem seu leitor Jacobsen. E mais, os Israéis e os Jacós que conheço não diriam isso de Freud, de modo que não se pode generalizar. Mas conheço o Historiador Décio Freitas o suficiente para saber de sua importância. Quando ele foi escolhido como patrono de um dos eventos culturais mais importantes de nossa cidade, a Feira do Livro, eu me senti orgulhoso por ser seu conterrâneo! Espero, assim, que esta minha modesta contribuição possa ampliar o campo de pesquisa que moveu sua opinião. 
          Professor, minha primeira epígrafe, Lügen haben kurze Beinen, foi inspirada pelo título do texto do seu citado Iraëls. Como o senhor certamente já a traduziu, As mentiras tem pernas curtas. Eu estou nisso há mais de trinta anos. Quando eu comecei, o Dr. Pellanda já estava em campo. A Psicanálise já passa dos cem anos... Cacos, Professor, abrem nosso apetite. Quando em 1989 Freud publicou a sua Traumdeutung datando-a de 1900, isso nos faz pensar, pelo menos, que a mudança de século não lhe era indiferente. E aí, avant condamnation, se posso assim me exprimir, ele escolhe os quintos dos infernos como lugar de trabalho: Flectere si nequeo superos, Acheronta movebo. 

          Nenhum homem preocupado com a verdade pode desconhecer a mentira. Já no seu Entwurf, no seu Rascunho Para Uma Psicologia, de 1895, um ano antes do citado A etiologia da histeria, Freud reconhecia a importância da mentira; chamou-a de proton pseudos, a primeira mentira, dizendo que no nível do inconsciente o sujeito mente como maneira de dizer a verdade, a mentira é um modo de acesso à verdade . 

          Por isto tomei como minha segunda epígrafe o Paradoxo conhecido como O Cretense. Na sua forma mais extensa o paradoxo diz o seguinte: 

 

    Epimênides é cretense e afirma
    Que todos os cretenses mentem.
  Se Epimênides é cretense e todos os cretenses mentem, 
  então quando Epimênides afirma:
    Todos os cretenses mentem,
  afirma uma proposição verdadeira. Portanto,
  Epimênides não mente quando afirma que
Todos os cretenses (incluindo Epimênides) mentem.
  Como consequência:
1. Epimênides mente se e só se não mente
    (isto é, diz a verdade).
2. Epimênides não mente
     (isto é, diz a verdade),
     se e só se mente.
          Poderia citar-lhes ainda o Paradoxo de P. E. B. Jourdain, mas não quero cansar-lhes. Poupo-os para que possam escutar Lacan quando ele diz: Eu, a verdade, eu falo, porém não toda porque as palavras não dão conta de dizê-la inteira. O nosso conhecido Jorge Luiz Borges nos diz, de uma forma bem humorada, também conhecer a verdade, mas que, enfim, não sabe como dizê-la. Quer dizer, se depender da capacidade de dizer a verdade, Freud estará em boa companhia. 
          E sobre o quê mente Freud? Mente sobre os sucessos terapêuticos! Mente mesmo? Para tirarmos isso a limpo, proponho acompanharmos o uso feito por Freud desta expressão, sucesso terapêutico, ao longo de sua obra, para ver se ela é adequada, e que tenhamos em mente, durante esse percurso, a noção cartesiana do verdadeiro, conforme a celebre forma dada por Spinoza: Idea vera debet cun suo ideato convenire. Uma idéia verdadeira deve (quer dizer, é necessidade própria de uma idéia) estar de acordo com o que é ideado por ela.  
          É mesmo bem possível que a primeira vez que Freud a use seja nesse mencionado artigo de 30 de maio de 1896, Sobre a etiologia da histeria. Ele aí fala sobre o therapeutische Erfolg dos 18 casos. Poder-se-ia complicar um pouco, dizendo que em seus artigos anteriores, tanto no de março do mesmo ano (A hereditariedade e a etiologia das neuroses), como no de 15 de maio (Novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa), ele se referira a estes casos como sendo 13. Mas a crítica não é ao número. Se fosse, poderíamos lembrar ainda o seu importante texto de 1919, Uma criança é batida, onde ele promete seis casos e termina falando apenas em quatro, o que a meu entender só mostra o valor que ele dava a estatística: nenhum! A crítica era ao que ele chamava de Sucesso Terapêutico. Vejamos então: a expressão parece para mim uma tradução adequada de therapeutische Erfolg. Erfolg quer dizer êxito, resultado e também sucesso; e eu diria que o sucesso aparece aqui no mesmo sentido de resultado e, principalmente, chamaria a atenção para o fato de que Freud não diz Erfolgreich. Se ele quisesse dizer que os casos tinham sido coroados de êxito, teria usado esta palavra, Erfolgreich, e não simplesmente Erfolg 
          Freud volta a usar a expressão sucesso terapêutico em 1909, na Discussão da Análise de uma fobia em um menino de cinco anos para dizer aí que o "sucesso terapêutico” não é o objetivo primordial da psicanálise[4]. Em 1911, já na Introdução ao seu estudo do caso Schreber, ele retoma a expressão chamando a atenção para os cuidados que se deve ter antes de oferecer tratamento a pacientes paranóicos: exige-se alguma perspectiva de sucesso terapêutico,[5] pois este depende bastante da convicção do paciente a qual é possibilitada por determinados cuidados do analista, como Freud deixa claro em 1920, no seu Além do princípio de Prazer[6]. Em 1921, no seu Psicanálise e telepatia, Freud retoma a idéia expressa no caso de Joãozinho, dizendo que o interesse da Psicanálise vai além do sucesso terapêutico[7]. É em 1923, no seu Dois verbetes de enciclopédia, que vai aparecer a expressão grande sucesso terapêutico conseguida pelo trabalho de Breuer[8]. Creio que é por aqui que recai a crítica de que Freud se convencia do sucesso e fazia de tudo para que outros também disso se convencessem, mas isso, eu diria, tinha a ver com o fato de que o inegável sucesso terapêutico da psicanálise excedia em muito qualquer outro que houvesse sido anteriormente conseguido[9] como diz o próprio Freud em 1923. Creio que a expressão é utilizada por Freud, pela última vez, em 1937, quando diz que o uso da Psicanálise com psicóticos pode trazer um grande e valioso conhecimento mesmo que não conduza a nenhum sucesso terapêutico[10], quer dizer, o sucesso terapêutico não parece ter sido nunca a meta primordial da psicanálise e, se lembrarmos sua recomendação de que não se deve ter pressa em curar, porque a cura, quando sobrevêm, é por acréscimo, isto ficará ainda mais claro. 
          Quero crer, então, que esse percurso pela expressão sucesso terapêutico, o percurso do próprio Freud, o qual mostra coerência com a proposição cartesiana oferecida por Spinoza, seja bem diferente do oferecido pelo artigo e que, principalmente, leva a outro destino. 
          É importante salientar, contudo, que o artigo não diz que Freud não admitia seus erros e nem sequer sugere que não se possa errar. Quando Heidegger lê Heráclito, ele diz que traçaríamos uma imagem bem estranha dos pensadores se achássemos que ele pensam sem errar. Os pensadores essenciais são precisamente aqueles que pensam o verdadeiro, apesar dos vários erros que lhes ‘ocorrem’[11]. A crítica, suponho, é por um exagerado délai neste reconhecimento: 17 anos. Isso eu não sei responder, se é muito, ou pouco. Em todo caso, o que sei é que tem gente passando uma vida inteira sem sequer desconfiar de que poderia, quem sabe, estar enganado!  
          Minha terceira epígrafe, o adágio escolástico Ex falso sequitur quod libet, tem a pretensão de dar conta disso: as premissas parecem não importar tanto, pois a uma prótese falsa pode se seguir tanto uma apódose falsa como uma verdadeira. Digo isso, não para dar razão à crítica, mas sim, a contrario, para dizer que a crítica é descabida e que concordo com o Dr. Pellanda quanto aos benefícios que a psicanálise tem possibilitado. 
          Antes de finalizar, queria deter-me ainda nas três últimas frases do texto de Décio Freitas: a primeira delas diz que a psicanálise se baseia em observações e que o sigilo inibe a contestação. O que quero lhes dizer, é que isso não é toda a verdade: a observação está por demais impregnada da função do olhar, caracterizando antes o método da medicina e o da psicologia; o método da psicanálise é o da escuta. É outro o sentido aí implicado. E o sigilo também não impede sua contestação, prova disso é nossa presença aqui, hoje, nessa mesa. E mais, o modo como um analista suporta teoricamente sua leitura pode também ser objeto de contestação, prova disso foi a expulsão de Lacan dos quadros da IPA, o que não implica, desde logo, que os expulsores estivessem com a razão. 
          A frase seguinte, a penúltima do artigo, que atribui a Lacan a vinculação da Psicanálise a uma prática pré-moderna como a alquimia, que exigia pureza d’alma do operador, tem todo o jeito de ser verdadeira, porém, dita assim, quase em seco, tem tudo para ser mal interpretada. Lacan, em sua conferência de 1946, nas Jornadas de Bonneval, Propos sur la causalité psychique, diz que toda atitude incerta a respeito da verdade saberá sempre desviar nossos termos de seu sentido e esses tipos de abusos não são jamais inocentes[12]. Lacan valorizava a alquimia, é verdade, ele aprendeu isto com Koyré[13], mas nessa frase ele não está advogando nenhuma pureza, nenhum catarismo, nenhum retorno a nenhuma prática pré-moderna como a frase poderia indicar; ele possivelmente está se referindo ao conceito desejo do analista, que não é o desejo de ser analista, nem o desejo de um analista, mas antes o desejo de analisar, norte de sua ética. De modo que a última frase do texto deve ser lida de outro modo: não se trata de que se não se pode confiar no desejo do analista de Freud... ao contrário, sua vida inteira, como o atesta a dissecação mencionada pelo Dr. Pellanda, é prova de que se pode confiar, sim! 
          E então termino, invocando o mencionado direito de pensar diferente: antes que pelas neurociências, queria declarar minha simpatia pela linguisteria. 

          Muito obrigado, ou Minto, obrigado! 

Porto Alegre, 05 de julho de 2000 
lots@uol.com.br 
www.tellesdasilva.com

 
 
Apresentado na Mesa-redonda homônima promovida pelo Recorte de Psicanálise,
no Salão Mourisco da Biblioteca Pública, em 5 de julho de 2000.

 

Notas:

* Este verso, tomado como epígrafe por Eliot, pertence à Divina Comédia de Dante, Inferno, XVII, 65-66.

i.  ZH Volume: 037 Edição: 12.701 Domingo 28/05/2000 Página: 21
Editoria: Opinião
Assunto: Indlet, Dúvida, Questionamento, Cura

Freud, um mentiroso?
DÉCIO FREITAS *

Cada época histórica costuma fazer ajustes de contas com a época pretérita - seus valores e seus ícones -, e o faz de forma cruelmente iconoclástica. Marx, pensador da utopia social, está reduzido a cacos. Freud, pensador da cultura moderna, sofre ataques que sequer poupam sua probidade científica.
A era das suspeitas sobre a probidade científica iniciou-se com audaz livro de Frank Cioffi (1973): Foi Freud um Mentiroso? Henri Ellenberger tachou a probidade científica de Freud de "vasta lenda". Historiadores da psicanálise questionaram suas curas. Acusam-no de inculcar como casos "objetivos" fragmentos de sua auto-análise, de esconder as fontes, de atribuir aos pacientes "livres associações" por ele próprio elaboradas, de exagerar sucessos profissionais, de difamar os oponentes. Ano passado, saiu em alemão livro do holandês Han Israëls, Der Fall Freud: Die Geburt Der Psychoanalyse Aus Der Lüge (Mais ou menos: O Caso Freud: o Nascimento da Psicanálise, Gerada pela Mentira). Na London Review of Books de abril, Mikkel Borch-Jacobsen, da Universidade de Washington, autor de Lembrando Ana O: um Século de Mistificação, fez sobre o livro extensa e erudita resenha, base deste artigo.
Israëls propõe-se fazer o diagnóstico da mendacidade de Freud. Com argumentação meticulosa, tenaz, devastadora, sustenta que ele confiava tanto em suas teorias que anunciava publicamente sucessos terapêuticos ainda não confirmados. Quando os sucessos não se materializavam, abstinha-se de dar a razão verdadeira - a prática de grave fraude científica. Como criança apanhada em flagrante, recorria a novas mentiras, acusando outros de lhe terem mentido. Sim, como dizia Cioffi, "Freud era um inveterado mentiroso que não hesitaria um só momento em reescrever a realidade se isso lhe permitisse sair da apertura". Fazia passar seus fracassos terapêuticos por avanços científicos. A despeito da retórica positivista, a psicanálise teria sido, desde o início, prática puramente especulativa, na qual fatos e provas tinham, na melhor das hipóteses, papel marginal. Como podia acreditar em todas aquelas bobagens que lhe contavam? Punha a culpa em outros, convertendo fracassos em vitórias: afinal, não fora ele próprio quem revelara as mentiras? Para Israëls, as mentiras começaram antes mesmo do nascimento da psicanálise. O primeiro grande fiasco foi em artigo (1884) no qual recomendava a cocaína para males tão diversos como desordens digestivas, enjôos a bordo, neurastenia, nevralgias faciais, asma e impotência, garantindo que a droga não criava dependência, como comprovara na cura de paciente (na verdade, o paciente de Freud era um amigo e o tratamento revelou-se um trágico desastre). Eminente especialista, o doutor Alnrecht Erlenmayer divulgou que testara o tratamento, sem resultado. Ao contrário, o paciente viciara-se em cocaína. Acusou Freud de adicionar à morfina e ao álcool "a terceira praga da humanidade". Réplica de Freud: o colega administrara mal a cocaína. Nunca mais voltou ao assunto, sempre ocultado por seus biógrafos.
Freud datava o nascimento da psicanálise do dia em que seu amigo Josef Breuer teria conseguido eliminar os sintomas histéricos de sua paciente Ana O. Demonstra Israëls que ela não foi curada pelo método psicanalítico ("cura pela fala"), mas após vários períodos de internamento em clínicas. Freud jogou a culpa no amigo, que não reconhecera o papel da sexualidade na etiologia da histeria (texto de Breuer desmente isso). Israëls denuncia a fraude da "Teoria da Sedução". Em conferência de 1896, Freud sustentou que os sintomas da histeria podiam ser atribuídos a traumas sexuais da infância, proclamando que em 18 casos descobrira a conexão e tivera sucesso terapêutico. Quatro meses depois, confessou ao amigo Fliess que nenhum dos tratamentos fora concluído. Não o comunicou porém, a seus colegas. Só 17 anos depois admitiu haver errado na teoria da sedução, sem mencionar seu fiasco terapêutico e o papel deste no abandono da teoria. Haviam-no confundido os "relatos em que pacientes referiam experiências sexuais passivas nos primeiros anos da infância", até que percebeu tratar-se de fantasias oriundas da "vida sexual da criança".

Jacobsen relativiza as denúncias de Israëls. As mentiras de Freud sobre questões clínicas não bastam para condenar a psicanálise. Só a reconstrução do contexto teórico de Freud permitirá explicar por que tão facilmente tomou suas especulações por realidade. Se a psicanálise deve ser criticada, não é por "fabricar" a evidência, mas por recusar-se a reconhecer isso e tentar encobrir o artifício. Freud não mentia cinicamente - só se convencia do próprio sucesso. Para Jacobson, à diferença das modernas ciências experimentais, a psicanálise se baseia em "observações" que, devido ao sigilo médico, não são acessíveis a outros pesquisadores, inibindo a contestação e o consenso. Como Lacan candidamente admitiu, isso é o que vincula a psicanálise a uma prática pré-moderna como a alquimia, que exigia "pureza d’alma do operador". Jacobsen: se não se pode confiar na "pureza d’alma" de Freud, o que resta da psicanálise?
_______________
*Historiador
 

ii.  ZH Volume: 037 Edição: 12.708 Domingo 04/06/2000 Página: 22
Editoria: Opinião
Assunto: Indlet, Polêmica, Diagnóstico

Freud era mesmo um mentiroso?
LUIZ ERNESTO CABRAL PELLANDA *

Fico triste ao ver um conterrâneo, cujos escritos tanto respeito, entrar nesse vagão do ataque indiscriminado a tudo o que se move ou tem valor, tão ao gosto deste fim de século. Não tenho procuração para defender Freud, nem preciso: sinto-me suficientemente incluído no ataque para agir em legítima defesa. É verdade que"Décio Freitas se diz apenas reprodutor do resenhador de um certo holandês Israëls, um outro Borch-Jacobsen. Dito assim, parece apenas uma briga de família, mas o que está por baixo é o mais grave: trata-se de um ataque sistemático e orquestrado contra os avanços do conhecimento sobre a alma humana, previsto desde o início pelo próprio Freud.
Freud advogava o silêncio como resposta a estes ataques, alegando não serem estas pessoas capazes de perceber a extensão das verdades psicanalíticas por não disporem da experiência pessoal, única forma capaz de gerar convicção. Até por isto foi acusado de incluir o insight psicanalítico entre as revelações religiosas... Rebater uma por uma das acusações de "mendacidade" de Freud seria tudo o que estes detratores desejariam: ficar-se-ia discutindo a rama sem penetrar no cerne. Poucos cientistas, em todas as épocas, tiveram suas vidas tão dissecadas quanto Sigmund Freud. Pode-se acusá-lo de tudo: de ingênuo ao se despir tão completamente diante de seu público, única forma de mostrar a universalidade dos seus achados sobre a existência do inconsciente. De idealista, ao tentar a solução de tanto sofrimento humano com tão poucos instrumentos. De pretensioso, ao se perceber em um campo inteiramente novo, onde só ele foi o desbravador, a ponto de até hoje não se poder escrever sobre qualquer tema em psicanálise que não tenha sido ele o primeiro a abordar, mesmo que superficialmente, de modo que se hoje avançamos bastante, o foi sobre a base que ele deixou. Mas mentiroso? Porque pensava ser "cura" o que hoje percebemos como etapa em um desenvolvimento sem fim? Ele mesmo foi extremamente pessimista em seus últimos escritos, como Análise Terminável e Interminável, quanto à possibilidade de uma "cura" real. Seria o mesmo que tachar de mentirosos os cientistas que defenderam a existência do "éter" no espaço e desconhecer todo o esforço de milhares de outros que contribuíram para um melhor entendimento do tipicamente humano em tantas áreas do conhecimento.
E que estranho edifício este da psicanálise, que a tantos vem beneficiando, se construído sobre mendacidades... E que belas mentiras estas, que permitiram o avanço da humanidade na compreensão dos seus mecanismos mentais. Que Deus tenha feito o mundo em sete dias também é uma mentira... tomado pelo ponto de vista deste senhores. Mas que lindas conseqüências o acervo destas e de outras, reunidas em um livro, pode gerar. Pode-se acrescentar, quem sabe, que mesmo sobre isto avançamos e podemos reinterpretar como simbólicas essas "mentiras", o que delas faz outra coisa que não mentiras. Se todas as "verdades" estão contidas em um único livro, corremos o risco de que todos os outros sejam ou redundantes ou deletérios, como já aconteceu em momentos desta nossa humanidade. Por isto respeito o direito de "pensar diferente" que todos temos, mas atacar por atacar é apenas tentar obter um pouco da glória de quem atacamos, como o assassino de Lincoln pretendia.

Freud é muito mais importante para a ciência em geral do que apenas para a psicanálise: graças em grande parte a ele foi possível a mudança paradigmática, vivida hoje em dia, que rompe com a dicotomia cartesiana entre corpo e mente e que considera a emoção um impedimento ao conhecimento. Ele mostrou que, ao contrário, a emoção é condição para saber, como aliás vem sendo amplamente demonstrado pelas neurociências modernas. De modo que, na minha opinião, Décio não é um mentiroso, apenas se deixou levar pela ilusão, conduzido ao engano num destes momentos de obnubilação que nos acomete a todos, a alguns com maior freqüência.
____________
*Psicanalista

1.  FREUD, S. Conferências Introdutórias sobre Psicanálise. Conferência I (1916[1915]). Rio de Janeiro, Imago, Col. Std. Bras. das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XV, 1976, p. 30.
2.  FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica (1950[1895]). Rio de Janeiro, Imago, Col. Std. Bras. das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud, vol I, 1977, pp. 468-9.
3.  LACAN, J. “Propos sur la causalité psychique” [1946]. In Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 154.
4.  FREUD, S. Análise de uma fobia em um menino de cinco anos [1909]. Rio de Janeiro, Imago, Col. Std. Bras. das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud, vol X, s/d, p. 127. Itálicas do autor.
5.  FREUD, S. Notas Psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (Dementia Paranoides)[1911]. Rio de Janeiro, Imago, Col. Std. Bras. das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud, vol XII, .p. 23.
6.  FREUD, S. Além do princípio de prazer [1920]. Rio de Janeiro, Imago, Col. Std. Bras. das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XVIII, 1976, p.32.
7.  FREUD, S. Psicanálise e telepatia (1941[1921]). Rio de Janeiro, Imago, Col. Std. Bras. das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XVIII, 1976, p. 223.
8.  FREUD, S. Dois verbetes de enciclopédia [1923]. Rio de Janeiro, Imago, Col. Std. Bras. das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XVIII, 1976, p. 287.
9.  FREUD, S. Uma breve descrição da psicanálise (1924[1923]). Rio de Janeiro, Imago, Col. Std. Bras. das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XIX, 1976, p. 252.
10. FREUD, S. Construções em análise [1937]. Rio de Janeiro, Imago, Col. Std. Bras. das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XXIII, 1975, p. 303.
11. HEIDEGGER, M. Heráclito. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1998, p.55.
12. LACAN, J. “Propos sur la causalité psychique” [1946]. In Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 161 (a tradução é minha).
13. Ver “Si vis vitam, para mortem”. In L.-O. Telles da Silva, FREUD / LACAN: O desvelamento do sujeito, Porto Alegre, AGE, 1999.

 

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