Página de Luiz-Olyntho Telles da Silva

MISTÉRIOS GOZOSOS

 

Uma leitura de

Olhos de Cadela

Ana Mariano

Porto Alegre

Ed. L&PM, 2006

112 p.

 

 

Safo reclinada. Escultura de Dannecker, 1800.

 

Se Cristóvão carrega o

mundo, onde apóia o pé?

Antigo enigma.

 

Os poemas de Ana Mariano, em Olhos de Cadela, são muito bons. Suscitaram-me estas linhas.

Léa Masina resgata na orelha, dos Olhos de Cadela, o olhar. Ele está mesmo sugerido pelo título. E os poemas são visuais, coloridos, perfumados. Frutos de um olhar.

Os quadros de Ana Mariano têm a exuberante doçura de um Monet. As cores vão passando de objeto a objeto e ocultando cada vez mais o sujeito.

Suas pinceladas, contudo, têm um efeito estranho! Elas nos possibilitam ver no que está o que não está.

Que ela fala de pessoas, é patente. Que podemos nos ver nos seus retratos e sonhar com nossas próprias lembranças, vendo tudo com a maior clareza, quem pode negar? Mas o acesso às pessoas não é direto, é oblíquo, refratado via secundum intelectum.

Os poemas de Ana Mariano são traços, ondulações a nos lembrar pessoas, pessoas que podem ser cada um de nós.

Quando se diz mulher, se diz mulher de fino trato (25), quem fala é a China Rita. E mulher de fino trato, como nas conversas de fandango, pode ser uma característica muito desejável, tal a vulva, a bunda, os mamilos (22), sempre pedaços, migalhas de domingo.

As pessoas estão aí como ologramas formados pela refração de flores, rios, sombras, o tempo espesso, os ciúmes, uma cabralina linha de pedra. Mas nós as vemos somente como reflexo, como o que restou no espelho, um rosto só, opaco como a lua que se vê ao dia.

A opacidade parece efeito da vida e da morte, como no trabalho das fiandeiras: o trama da composição pouco a pouco de uma e da célere regressão de outra. A luz com que isso se nos mostra, não é como a filtrada pela veneziana, mas sim algo entre a luz e a veneziana.

As figuras são esquivas, fugidias. Se queremos nos aproximar um pouco mais, temos que atentar letra a letra.

Olhos de cadela são, por certo, olhos que vêem, mas são também o reconhecimento do cio e uma confissão da cor de seus olhos, a submissão ao império da cor, algo entre o glauco e o fulvo, algo entre a floresta e o leão seu rei. A referência são os olhos de Helena, a troiana desejada, representante clássica da saga ilíada, sempre frente ao vazio, sempre a espera do preenchimento. Haverá outra cor mais representativa do ser desejada?

Aí começam os mistérios. Ao observarmos suas repetições, eles sobressaem, gozosos. Os gozos sobrenadam seu discurso. Aparecem pela primeira vez em Porta à porta. Alguém, ou mesmo algo, mussita em seu ouvido um sopro explícito: fala-se de Platão, entrevê-se Sócrates e Alcebíades, sabia de cor os mistérios gozosos! Mas quem sabia? Eu? Ele? ou Ela? E em seguida sua consistência: em Emigrante (52), queria conhecer os mistérios gozosos. Outra vez a transitiva dúvida entre a primeira e a terceira pessoa. O sujeito é quem fala, ou de quem se fala? Ou, ainda, mesmo no Eu algo fica excluído?

Tia Florinda, não é a tia Florinda. São florindas, por certo apócope de flores-ainda. Sempre plural.

As fogosas presenças no tablao flamenco, quem são? Pitangas maduras! As manchas vermelhas do amado Miró! (33)

E Maria? Ela, qual um rio indecifrado (32), o Lifey de Ana Lívia Plurabelle, a Isolda de Joyce, também passa à minha porta (42). Abraçada por um cortejo, Maria é a mãe paciente, alguma coisa que perdoa. E aqui - quem sabe? - a essência do desejo: o cortejo! Amor cortês? Medieval? Da meia idade? Não! Amor de sempre. Mas o cortejo? Será procissão? Será carnaval? A religião? O valor da carne? Ana nos responde: carnaval é festa de cigarras bêbadas entre léguas de mormaço. O cortejo tem de um tudo!

Agora, o que parece existir mesmo é a menina, senão ela ela, na segunda potência, pelo menos seu retrato! Um retrato como os feitos pelas nossas Alices, mas antes de tudo, uma identidade, uma identidade descrita em código semáforo. Sob a égide da bandeira do Divino (104), viril e misteriosa, com as cores da flâmula do Rio Grande do Sul ela vai pintando a menina: com o amarelo, sua pele pagã, com o vermelho, o reflexo dos brancos olhos de batalha, com o verde, o brincar sem pressa (26). Até aí se vê claro, mas depois, é como na pintura de Bosch retratando São Cristóvão carregando o Menino Jesus: até aos fundilhos da criança, tudo se identifica, daí para cima é o vazio do mundo! Um vazio feito de buracos por onde escorre sono de criança. (64)

A mulher é a hegueliana aufhebung da menina, sua superação conservadora.

Ana, em suas rimas, por certo homenageia seus mestres. Há certas coisas que disseram melhor que ninguém. Mas seu modo de caracterizar o vazio, esse, é seu. Chamou-me à atenção seu estilo de escansão e também suas crases.

Escutei uma maravilhosa. Vejam só!

Quando ela homenageia o Borgonha (37), um vinho a nos fazer pensar em um corpo, ela diz assim:

 À sombra torta de uma boina desce a rua,

pouco a pouco,

vincando o rosto da manhã.

Sem a crase, veríamos - através de uma frase muito boa - uma substantiva sombra descendo a rua, vincando, a cada passo, o rosto da manhã. Mas a presença da crase como que dessujeita a sombra do boné, projetada na parede ou mesmo alongada pelo chão matinal, criando um outro espaço. A crase cria uma sombra sob o boné. É oculto nessa sombra que o sujeito desce a rua.

Como nos contos de Julio Cortazar, o passado e o presente se entrelaçam. A Helena das falésias do mar Egeu e a menina trigueira dos nossos pampas a metamorfosear-se em mulher. Do universal ao particular, para daí retornar.

E então o Professor Donaldo Schüler, com frecha certeira, a lê como sombra de Safo. Seu poema central, Mythóplokos (59), nos dá a chave. É com essa expressão que Safo designava Eros. Aí se entrevê Penélope, tecelã envolta em púrpura, tecendo Eros e mitos para proteger-se dos medos da ausência presente, mesmo no imprevisto da esquina. Mas não há de ser só por isso.

Identifica-se Safo também em Feito um bolero (74):

Que meus cabelos brancos hoje sejam prata,

as rugas, rios de muitas águas,

cada poro meu seja um lago.

Safo também assim se dizia, geraitera, um tanto idosa. Os fragmentos que dela nos restaram, desde o sétimo século a.C., apontam para poemas francamente visuais, onde as pessoas aparecem também por seus reflexos. Uma tradução de um deles diz assim:

Parece-me igual aos deuses

ser aquele homem que, à sua frente sentado,

de perto, doces palavras, inclinando o rosto,

escuta.

Outra tradução do mesmo diz assim:

Contemplo como o igual dos próprios deuses

esse homem que...

Dizer do indefinido da mulher é também seu estilo. Por vezes louva a vaga beleza loura de Helena e, por outras, refratada pelas rosas de Piéria, vaticina-lhe ser desconhecida até na casa de Hades e que, errante, esvoaçará em meio a obscuros mortos.

Ana, por sua vez, comparando o homem a jarra que só é pelo espaço vazio, enuncia em Mínimas alegrias:

Assim como a jarra é jarra pelo espaço

que contém e que mantém à espera,

somos a morte que nosso corpo encerra,

vida apenas afinal e entre vidas precárias

nos movemos.

Ocupado desde sempre com Safo, o Prof. Donaldo destacou, certa vez, um de seus fragmentos:

ERA

DERATO

GONGYLA

Impactado com ele, Ezra Pound compôs:

SPRING...

TOO LONG...

GONGULA...

Augusto de Campos, não menos tocado, ensaiou:

DOMINGO...

TÃO LONGO...

GÔNGULA...

E hoje, refratado pela poesia de Ana Mariano, eu o lerei assim:

Domingo

Migalhas vazias

Pitanga.

 

Muito obrigado!

Porto Alegre, 12 de fevereiro de 2007

Luiz-Olyntho Telles da Silva

http://www.tellesdasilva.com


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