Página de Luiz-Olyntho Telles da Silva


JASMINS

Luiz-Olyntho Telles da Silva
2006-2007

Para
Luiz Erneta


Prezado Professor G.F.


Preciso contar-lhe um caso. Como o Sr. bem sabe, tenho levado minhas análises com boa desenvoltura. Nos vimos pela última vez no ano passado, no congresso de Barcelona, e quase não nos falamos, tão ocupados estávamos com nossos respectivos compromissos. Mas agora é imperativo voltar a falar. Nos longos anos de convivência aprendi muito consigo, mas, como diz o ditado, a gente morre e não vê tudo. Volto então mais uma vez à sua presença para relatar-lhe um caso inusitado. Talvez o Sr. tenha algo para me dizer.

Começou assim:

Eu aproveitava um horário vago para colocar minha correspondência em dia, quando fui invadido por um intenso perfume de jasmins e logo me apercebi da presença de uma pessoa no consultório. Olhei para trás, por cima do ombro, e lá estava ele. Por certo eu deixara a porta da sala de espera aberta mais uma vez.

Segurava o chapéu pela aba, com as duas mãos, girando-o discretamente, enquanto me olhava como quem pede permissão para falar. Vestia um terno de linho como eu não via há algum tempo. Talvez um modelo fora de moda, mas o corte era impecável.

Levantei-me para cumprimentá-lo e seus lábios se moveram sem emitir nenhum som, como se tivesse balbuciado algo inaudível.

Convidei-o a sentar-se e ele aceitou, ocupando, porém, apenas a beirada da poltrona, como se estivesse pronto a levantar-se no minuto seguinte. Contudo, olhava para o chapéu e continuava em silêncio.

Algo destoava na sua roupa. Acima da gola da camisa de tricolina branca, havia um lencinho enrolado no pescoço, possivelmente de organza. Discreto, mas destoante!

Seus lábios continuavam balbuciantes e completamente surdos.

Perguntei-lhe, então, em que poderia ajudá-lo.

Olhou-me admirado, com a boca um pouco aberta. Pareceu-me fazer um grande esforço para articular algumas palavras nas quais adivinhei uma pergunta à propósito de minha escuta, algo como se estivesse surpreso por eu não escutá-lo. Vi seu esforço na emissão das palavras e encorajei-o, dizendo estar começando a ouvi-lo melhor.

Disse conhecer-me já há algum tempo, como alguém que ouvia as pessoas, e ele precisava de ajuda, embora falar fosse para ele muito difícil. Mas agora estava vendo ser ainda mais difícil do que imaginava.

Na despedida disse-lhe para voltar no dia seguinte.


* * *


Sua aparição deu-se nos mesmos moldes: absorto na correspondência, só me apercebi de sua presença pelo perfume de jasmins.

Dito desse modo, o Sr. pensará que me tornei um parvo; mas foi exatamente assim. Sua voz parecia um pouco mais firme. A dificuldade da qual sofria, era de respiração, e lhe ocorria principalmente na hora do amor, quando sentia a iminência do orgasmo - disse-me ele indo direto ao ponto.

Encorajei-o a continuar falando e ele disse de sua angústia, do sofrimento e de sua renúncia à prática sexual como tentativa de evitar a falta de ar. Mas o tesão pelas mulheres, especialmente pelas negrinhas, era inevitável, e lá vinha a respiração arfante e a sofreguidão cada vez pior, cada vez pior, até buscar o suicídio. Ao dizer isso, ele ergueu a mão até o lencinho do pescoço, afastando-o, com a ponta do dedo, da gola da camisa, o suficiente para deixar entrever uma grossa mancha arroxeada sobressaindo de sua pele lívida.

Uma tentativa fracassada? Menos mal, pensei com meus botões.

Mas em seguida, para minha surpresa, ele continuou:

- Morrer não adiantou nada! Continuo a sofrer. Agora, constantemente. Já não penso em mais nada além dessa aflição a me ocupar todo o tempo, há séculos. Por favor, me ajude.

Nunca se sabe bem o alcance de uma metáfora, argumentei comigo mesmo, enquanto lhe pedia para contar-me mais.

- Quê posso dizer? Há muito tem sido assim...

- O senhor falou em negrinhas, disse-lhe eu, buscando assinalar-lhe uma porta de entrada para suas associações.

Pareceu-me vislumbrar um rápido lampejo em seus olhos baços, uma perturbação, um titubeio e um sim.

- As negrinhas foram sempre o meu mal, disse-me ele.

Supus que também tivesse lido algo de surpresa em meu rosto, pois logo emendou:

- O senhor se surpreende porque já não há escravidão! Agora todos têm os mesmo direitos. Se o senhor se apaixonar por uma negrinha, isso, hoje, não é problema. Mas no meu tempo, isso era muito complicado...

- No seu tempo? – perguntei estupefato.

- Sim. Eu entendo. Agora vejo que o senhor ainda não se apercebeu! Eu morri em 1834, Doutor, há cento e setenta anos, aliás, não muito longe daqui.

Sempre poderia ser algum tipo de brincadeira, mas não, eu é que não queria acreditar.

- Certa vez eu assisti o senhor dar uma conferência sobre fantasmas. Não entendi muito bem, mas me pareceu que o senhor achava importante para o sucesso de uma cura poder chegar a uma compreensão do fantasma – continuou ele. Pareceu-me muito verdadeira essa formulação, fez muito sentido para mim e por isso fiz este esforço em vir até aqui. Na verdade, tenho acompanhado alguns de seus pacientes, vendo o modo como chegavam e o modo como saiam, as mudanças em suas vidas. Está certo, esse não é o meu caso. Já não tem sentido para mim melhorar minha vida. Preciso mesmo é terminar de morrer. Preciso descansar. Que pelo menos meu último suspiro possa ser tranqüilo.

Então silenciou. Ainda rodava com o chapéu, segurando-o pela aba. Quanto a mim, estava pasmo! Quê sabia eu de fantasmas? Se ele me ouvira falar, era de uma figura teórica, mas um fantasma, de verdade, e no meu consultório?

Belisquei-me, discretamente, como dizem se deve fazer nessas ocasiões. Os analistas às vezes pegam no sono, hipnotizados pelos seus analisantes, e isso deveria estar acontecendo comigo, devia estar sonhando. Mas não! O beliscão doeu e o, como digo? o fantasma continuava lá, com seu terno de linho e o chapéu panamá.

Suas palavras interromperam meu devaneio:

- Então, Doutor, o senhor vai me ajudar?

- Ainda não sei, respondi-lhe quase mecanicamente. Quem sabe, se o senhor quiser me contar um pouco mais sobre como foi sua vida, quem sabe então poderemos ver se isso vai ser possível.

- Está bem. Não será difícil. Afinal – continuou ele, não sem ironia – minha vida foi mesmo muito curta. Começo por onde?

- Vejo que já temos um começo, disse-lhe eu interrompendo a entrevista. Continuaremos amanhã.


* * *


Quando senti o perfume das flores, soube que estava ali.

Logo começou a falar de sua vida no interior. Hoje ficou perto, mas noutros tempos se levava dois dias inteiros à cavalo para chegar até a casa grande da fazenda, com sua senzala, os negros, sua ama Sinhá Joana, o negro Jonathan que servia seu pai...

Resolvi intervir:

- O senhor estava falando ontem sobre as negrinhas. Não sei se entendi bem, mas o senhor falava das complicações de apaixonar-se por uma escrava?

- Sim. Quero dizer, não. Claro que não! Elas estavam ali, era só pegar, eram nossas. Tinha todas que queria.

- E as brancas? Tinha também?

- Claro! Havia em Olinda, não muito longe da Faculdade, um cabaré fantástico, com mulheres francesas e muitas alemãs também. Eram educadas. Bebia-se champanhe. Podia-se falar com elas de qualquer assunto. Conheciam artes, literatura e mesmo política. As negrinhas não. Não tinham tanto assunto, mas eram mais carinhosas, pareciam ter mais gosto quando faziam amor. Nessa hora elas se libertavam, eram rainhas e princesas outra vez, podiam sonhar e ser generosas. As de Olinda, as tais do s’il vous plait e do bitte meine herr, pareciam frias, mortas, e aos poucos deixei de ir lá.

- Hum, Hum. Assim que as pretinhas eram escravas de vocês...

- Sim, nossas, quer dizer, do Coronel meu pai, o mesmo que nossas.

- Mas se tinha tudo de que gostava à sua disposição, porque precisou renunciar? – perguntei como quem não entende.

- Pois é. De certo modo, poderia dizer de mim o homem mais feliz da terra. Mais um pouco e seria o herdeiro de um harém; e enquanto não era, podia ter quase tudo que queria.

- Quase?

- Sim... É verdade, tudo eu não podia... Tudo eu não podia - repetiu fazendo eco às suas próprias palavras.

- Parece que o senhor lembrou de um episódio?...

- Sim... Lembrei...

- Conte-me – disse-lhe eu  de modo persuasivo.

- Pois houve uma negrinha, sim, especial. Vez por outra lembro dela. Me chamava de Tuzinho. Era, sem sombra de dúvidas, a mais generosa de todas. Ela se preocupava comigo. Sempre discreta, cuidava da goma dos colarinhos e mantinha as gavetas da minha cômoda sempre arrumadas. Quando eu as abria, sentia sua presença e era logo invadido por uma agradável sensação de bem-estar. Meu Deus, quase não lembrava disso! Era uma paz... Tarde da noite, quando a casa já dormia, ela vinha sorrateira para minha cama. Usava uma água de cheiro, tirada não sei de onde, suave, sabendo a jasmim. Quando eu acordava, ela não estava mais. Por vezes eu a entrevia, na hora do café da manhã, ajudando sua mãe na cozinha. Não passava disso.

Esperei um pouco e, como ele não continuasse, disse-lhe ver nesse relato – uma história de amor – motivo para qualquer pessoa ficar feliz.

Mas ele rapidamente me interrompeu:

- Pois é, Doutor, mas não terminou bem – disse ele apertando nervosamente a aba do chapéu. Melhor eu lhe explicar com mais vagar. Isso acontecia quando eu voltava para a fazenda nas férias de verão. O resto do ano eu passava aqui em Recife, quero dizer, em Olinda, a Olinda dos cabarés, e freqüentando a Faculdade de Direito, onde me formei Bacharel. O senhor imagina que fiz parte da primeira turma, logo da fundação da faculdade? Ela funcionava ainda no Mosteiro de São Bento e os professores todos tinham sido formados em Coimbra. Pesado foi quando voltei, nas últimas férias antes da formatura – continuou ele. Eu chegara na fazendo já ao fim do dia. O Coronel estava fora, mas voltava para jantar comigo. Mamãe havia morrido de tuberculose antes de eu completar dois anos de idade e desde então era sinhá Joana, minha querida ama-de-leite a cuidar de mim e da casa. Foi ela a me receber nesse dia e a me mandar para o banho, como fazia sempre. O Coronel não deveria tardar para o jantar. E não tardou. Quando desci, ele já estava na sala, refrescado, ao pé de um abajur, olhando as manchetes de um jornal que eu trouxera da capital, enquanto o velho Jonathan lhe servia um uísque em uma salva de prata. Embora Jonathan não fosse nunca muito efusivo, notei uma diferença em seu sorriso de boas-vindas para mim, um pouco curto de mais, mas não liguei. O Coronel me estendeu a mão, cumprimentamo-nos, falamos da comentada promessa de visita do Imperador à Recife. José Bonifácio havia sido recém deposto do lugar de tutor. As expectativas eram muitas em torno de seu substituto, Manuel Inácio, então pouco conhecido por essas bandas. Mas a grande burrada, na sua opinião, tinha sido a de Dom Pedro I ao reivindicar o trono de Portugal, uma grande desconsideração ao país que o acolhera e que tanto esperava dele. Agora tinham todos que paparicar aquele menino!

 Jantamos em silêncio. Depois custei a conciliar o sono. Pensava que Ialá fosse chegar a qualquer momento, mas não. Não veio ela nem ninguém!

Na manhã seguinte não a enxerguei na cozinha. Havia algo de diferente, parecia tudo mais silencioso. À tarde, perguntei à Sinhá Joana se estava acontecendo alguma coisa diferente.

- Mas então tu num sabe, Zifio?

- Não sabe o quê?

- Ai, meu Deus – gemeu Sinhá Joana. O Zifio num sabe que Ialá morreu!

Um zumbido intenso, como se todas as cigarras do mundo estivessem fazendo verão na casa grande, invadiu os meus ouvidos. Algumas estrelas começaram a cintilar na minha frente e em seguida desmaiei.

Acordei em minha cama – continuou ele – com Sinhá Joana segurando minha mão. Custei um pouco a lembrar do acontecido, mas quando vi uma lágrima rolando no rosto redondo de minha ama, a morte de Ialá voltou com toda força à minha memória.

- Mas o que foi que aconteceu? Ficou doente? Quando foi?

- Não, Zifio, ela num ficou doente. Ficou foi grávida! Seu pai descobriu e mandou matá ela.

- Mandou matá-la?

- Mandou, Zifio.

- Mas aquele velho está mesmo louco!

- Tu conhece o teu pai, Zifio, ele num gosta de vê as iaiá ficando grávida de outros. Quando soube que ela andava contigo, ficou tiririca, num dormiu duas noites e depois mandou jogá ela na fornalha do engenho. Eu tava lá, Zifio, e vi tudo. Escutei até o grito do sufoco dela e depois uma explosão seca. Era o filho na barriga arrebentando.

- Mas eu ainda mato esse desgraçado – disse eu pulando da cama.

- Para com isso, Zifio – disse Sinhá Joana me segurando. Tu sabe que num adianta nada. Tu num vai matá ninguém que num adianta. Nóis semo tudo dele mesmo. Ele faz o que quer e tá bem feito.

- Está certo – disse eu. A senhora está certa. O culpado fui eu. Devia conhecê-lo melhor. Eu a condenei à morte.

Nesse momento ele levou a mão à garganta, como se estivesse sentido falta de ar... e decidi interrompê-lo:

- Foi você que a condenou? Como assim?

Ele me olhou admirado, baixou a mão e emendou:

- Por me deitar com ela, ora!

- Ah! Sim – disse eu sem muita convicção.

- O senhor está certo - continuou ele depois de um momento -, havia algo mais. Nunca pensara nisto até então, pelo menos não com a clareza que me aparece agora: eu amava aquela negrinha, eu amava Ialá. Era ela que eu procurava nas outras e nunca encontrava.

Pareceu-me, naquele momento, que o perfume de jasmins se intensificou abruptamente, como se tivesse sendo espargido por toda a sala. Depois, aos poucos foi esmaecendo até não lembrar mais dele.

- Quando tentava fazer amor com outras, vinha-me a cena de Ialá sufocando na fornalha e... explodindo! – continuou ele levando outra vez a mão ao pescoço.

- E então sentia falta de ar – acrescentei.

- É...

Ficamos em silêncio por algum tempo e então me levantei, dando por encerrada aquela entrevista.

Ele levantou também, segurando o chapéu com as duas mãos e curvou-se em uma mesura discreta, em silêncio. Era seu agradecimento e sua despedida.


* * *


Na semana seguinte, eu já me preparava para deixar o consultório, guardava alguns papéis em minha pasta quando, subitamente, ali estava ele, outra vez, agora sem o perfumado prefácio. Em vez do chapéu, segurava um jasmim, para minha surpresa, sem cheiro. Na verdade, surpreendi-me outra vez: ele estava ali, eu podia vê-lo, e não sentia nenhum perfume, nem de jasmins nem de nada. Era só sua figura, me olhando, com a mão estendida na minha direção.

- Essa era a flor preferida de Ialá – disse ele entregando-me a flor. Pensei que o Sr. gostaria dela. É o meu modo de agradecer-lhe por sua ajuda. Agora já posso encontrar a prometida paz. Inclinou-se mais uma vez, respeitosamente, e disse um sentido "muito obrigado". Eu também, comovido, me inclinei. Ele se foi, e eu fiquei olhando a branca flor, esperando pelo seu desvanecimento.

Hoje faz seis meses desse último e rápido encontro. Ontem caiu a última pétala, ainda branca, daquele jasmim. Guardei-as todas, pois sempre que olhava para elas, eu sentia uma coisa boa dentro de mim. Talvez um misto de alegria e tristeza. Tristeza pela história de amor, tão infeliz, e alegria pela inusitada consulta daquele jovem bacharel.

Era isso que queria contar-lhe, Professor. Esperando pelos seus comentários cumprimento a si e sua simpática família.

Atenciosamente,

O.P.S.

Recife, 12 de março de 2004

Fortuna Crítica:
Beatriz Duró
Clarissa Dubeux  Lopes Barros
Everaldo Soares Junior

José Luiz Caon