Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

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O SOBRENATURAL NA CONSOLIDAÇÃO DO PATRIARCALISMO
NA
CIVILIZAÇÃO DO AÇÚCAR

Uma leitura de

ASSOMBRAÇÕES
E COISAS DO ALÉM
de
Fátima Quintas
Fundação Gilberto Freyre
Recife, 2009, 166 pp.

por
Luiz-Olyntho Telles da Silva

A religiosidade do homem parece ter começado com seu temor à morte. Enterrado o corpo, sua lembrança sobrevive (p.55). Ao chefe, protetor da caça, invocavam sua experiência protetora. Nasceram daí tanto as crenças como as crendices.

E, como essas coisas não costumam andar em linha reta, foram tomando as mais diferentes configurações, como um rio, com suas curvas a depender das características do solo por onde cruza.

Fátima Quintas examina as origens das crendices, na zona do açúcar, desde a chegada dos conquistadores portugueses nessas bandas, um pé atolado no massapê, o outro na descoberta carne índia que na figura dos colonizadores reconhecia a transfiguração dos deuses.

Seu Virgílio, nessas andanças, outro não é que Gilberto Freyre, sobretudo o de Casa-Grande & Senzala.

Por sua mão ela visita a Casa-Grande. Aí, a memória ganha vida. Seu interesse recai nas gavetas perras onde as lembranças jazem esquecidas, nos cheiros restados no ar da imensa cozinha, nos potes de doces, nos suspiros, na fumaça lançada pelos bueiros, nas cortinas de voile fino e transparente por onde ainda esvoaçam as figuras esfumadas de sinhazinhas franzinas, alimentadas a caldo de pintainhos, conflitadas entre o sexo luxuriante e a virgindade santa confessada às suas mucamas (pp.40-1).

A riqueza do engenho está presente em tudo. O jacarandá da terra feito mesa, a cerâmica portuguesa, tudo cheira à miscigenação. Mesmo as samaritanas que aguardam no aparador seu devido uso. Como nos conta São João (IV 5-42), para que uma pessoa nos dê atenção, mesmo entre judeus e samaritanos, basta que se a reconheça.

Avançando em seu périplo, Gilberto segue pelo longo corredor, olhando quarto por quarto: lá estão as donzelas, o patriarca tirando uma pestana, a comadre crocheteira. Olha os quadros nas paredes, com fotografias dos antepassados a registrar um patriarcalismo inconteste. Aí estão os vivos e os mortos, os últimos muitas vezes enterrados na capela anexa em que uma luz votiva está sempre acesa. Seus fantasmas, contudo, vagam soltos pela casa autorizando os patrões em seus mandos e desmandos.

F. Quintas valoriza o passeio porque é sua tese que o Brasil nasce de famílias, no espaço doméstico (p.49), mas o passado que ela busca é um passado cuja tônica está marcada pela reversibilidade (p.23). Interessa-lhe não um passado argumento para nossa condenação, e sim como subsídio para a construção de nosso futuro.

É dos desvãos, das sombras dos caminhos do engenho, da tagarelice das negras que surgem os fantasmas, as assombrações e as crendices. As cadeiras a balançar sozinhas, os pratos batendo nos aparadores, as madeiras do sótão rangendo. Almas a pedir rezas. A morte não liquida as contas, deixando-as em aberto para o pagamento dos culpados (ver p.79).

E não são só as pessoas a deixar rastros na vida. Os animais também. Do jogo do bicho, parente etimológico dos totens, ao culto do boi e do cavalo, tudo deixa indícios. Enquanto o boi das lides estava mais próximo dos escravos que com ele trabalhavam, o cavalo, montado pelo senhor, com suas rédeas barrocas – onde um Lezama Lima vai encontrar argumentos para compreender a libertação das Américas –, vai ajudar a sedimentar a mítica da arrogância (p.69).

Por aí desfilam o Sapo-Cururu, a Mula-sem-Cabeça, o Lobisomem, o mesmo que quase fez o Luís da Câmara Cascudo perder seu emprego, o Saci-Pererê, o Boitatá, a Iara, o Curupira de pés virados e o Bicho-Papão, entre outros a enriquecer o folclore.

Perdidos na noite escura da ignorância, a população, em grande parte escrava, tinha as asas de sua imaginação domesticada pelas atemorizantes crendices, favoráveis à manutenção do patriarcalismo. A lógica do sobrenatural na Civilização do Açúcar assegurou uma variável a mais na consolidação de seu poder (p.160).


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