Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

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OS SILÊNCIOS
DO CORONEL BRAMBLE

Encontrei um personagem muito interessante, o Coronel Bramble. Criou-o André Maurois. Na minha opinião, um escritorzão. Hoje já quase ninguém o lê, mas quando apareceu teve várias edições. Traduziu-o o Prof. Alvaro Franco para a Globo. Eu consegui uma edição de 1936, mas não posso afirmar que tenha sido a primeira. Mais tarde, em 1944, revisou-a Mario Quintana, traduzindo também os versos.

O livro é uma apreciação da primeira guerra mundial. Vista por Maurois, uma guerra muito pitoresca. O narrador é um bem humorado intérprete francês, trabalhando para o exército inglês.

Como diz o título do livro, a marca do Coronel Bramble é o seu silêncio, melhor dito, os seus silêncios. Calando, abre espaço para outros dizerem suas coisas. Então aparecem seus interlocutores, alguns mais diretos, como os membros de seu séqüito - Major Parker, um médico, o doutor O'Grady, o capelão Mac Ivor, e o intérprete Aurelle, pois estão todos em território francês - e outros eventuais.

Lacan refere-se uma vez a um trecho de uma destas conversas quando se fazia a apologia da fortuna conquistada versus a beleza herdada. Eu a incluí em uma nota de roda-pé, logo no início da Lição XII do Seminário 9, A Identificação.

Para dar uma amostra do espírito do livro, transcrevo o capítulo IX.  Aparece aí um contraponto da igreja anglicana com a igreja católica.

O capítulo abre com uma epígrafe de Shane Leslie: O ideal da Igreja Inglesa tem sido fornecer um cidadão residente a cada paróquia do Reino; e têm havido idéias piores.

Sir John Randolph Leslie, 3º Baronete (1885-1971), era primo em primeiro grau, pelo lado materno, de Winston Churchill. Dedicou-se à política e a literatura. Shane é a forma irlandesa de seu nome, e ele a adotou quando estudante em Cambridge. Nesta época ele havia se tornada um Católico Romano e um nacionalista irlandês.

Como se pode ver, a epígrafe sai de uma mente tomada pelo assunto. E o capítulo é assim, na revisão de Quintana (na qual tomei a libertade de atualizar a ortografia):

  Aurelle, chegando ao mess (rancho militar) para o chá, não achou ali senão o reverendo Mac Ivor, que estava consertando uma lanterna de projeções.
  - Alô, messiú, disse êste, muito prazer em vê-lo. Preparo a minha lanterna para fazer um sermão esportivo aos homens da B Company, quando eles saírem das trincheiras.
  - Como, Padre, o sehor agora faz sermões com projeções?
  -
My boy, estou tentando atrair os homens; há muitos entre eles que se abstém. Bem sei que o regimento conta muitos presbiterianos, mas se o senhor visse os regimentos irlandeses, messiú... nem um só homem falta à missa... Ah! messiú, os padres católicos têm mais prestígio do que nós, por quê não sei. Entretanto, vou todos os dias às trincheiras, e se os homens podem pensar que eu sou um velho maluco, de qualquer modo terão de reconhecer que sou um sportsman.
  - O regimento o estima muito, Padre... Mas, se me permite a franqueza, creio que de fato os padres católicos têm um prestígio particular. A confissão não é alheia a isso, e sobretudo, o voto de castidade os subtrai, em certa medida, à humanidade. Até o doutor vela pudicamente suas histórias favoritas quando o padre Murphy janta conosco.
  - Mas,
my boy, pelo que me diz respeito, gosto das histórias de O'Grady: sou um velho soldado, vi o mundo e conheço a vida. No tempo em que eu caçava na África, uma rainha negra me fez presente de três negras virgens...
  - Padre!
  - Oh! eu as pus em liberdade no mesmo dia: aliás isso as vexou muitíssimo. Mas não vejo a razão por que, depois disso, eu tivesse de vir fazer de Mistress Grundy aqui (personagem de Orgulho e Preconceito, de Jane Austin).
  Um dos ordenanças trouxe água fervendo e o Padre pediu a Aurelle que preparasse o chá.
  - Quando eu me casei... Assim não, messiú: é curioso, nenhum francês sabe fazer o chá. Primeiro aqueça o bule,
my boy, não se pode obter um chá conveniente em um bule frio.
  - Estava falando do seu casamento, Padre...
  - Sim, desejava contar-lhe que todos esses fariseus que queriam que eu fosse santarrão, no meio de gente nova, ficaram indignados quando eu quis sê-lo razoavelmente.
  "Quando me casei, naturalmente tive de fazer com que um dos meus colegas se ocupasse da cerimônia. Depois de ter regulado os pontos importantes: "Há, disse-lhe eu, no ofício do casamento, tal como o celebra a igreja anglicana, uma passagem que acho absolutamente indecente... Sim, sim, eu bem sei que é de São Paulo: Well, é provável que no seu tempo ele tivesse inteira razão para dizer essas coisas e que estivessem de fato adaptadas aos costumes dos coríntios. Mas não é menos verdade que não foram feitas para os ouvidos de uma donzela de Aberdeen, em 1906. Minha noiva é pura e ai de quem a escandalizar!"
  "O jovem, um vigariozinho mundano, foi queixar-se ao bishop (bispo), que me mandou chamar e me disse com altivez:
  "- É o senhor que pretende interditar a leitura da Epístola aos Coríntios? pois saiba que não sou homem para tolerar essas tolices.
  "- All right, disse-lhe eu, pois saiba que não sou homem para suportar que ofendam a minha mulher. Se esse fellow tomar a liberdade de ler a passagem em questão, nada direi na igreja, em respeito ao lugar sagrado; mas prometo-lhe que, logo depois da cerimônia, boxearei os ouvidos dele.
  "Well, messiú, o bishop me olhou com muita atenção para ver se eu estava falando sério. Depois se lembrou da minha campanha do Transvaal (referência à República do Transvaal, na África do Sul), da rainha negra e dos perigos do escândalo, e me respondeu com unção:
  "- Afinal de contas, não acho que a passagem que o choca seja absolutamente essencial à cerimônia do casamento."
  O doutor O'Grady entrou e pediu uma taça de chá.
  - Quem fez este chá? perguntou ele. Foi o senhor, Aurelle? Quanto pôs de chá?
  - Uma colher por taça.
  - Ouça um axioma: uma colher por taça, e mais uma para o bule. É curioso que nenhum francês saiba fazer chá.
  Aurelle falou de outra coisa.
  - O padre me estava contando o seu casamento.
  - Um Padre não devia ser casado. Bem sabe o que disse São Paulo: "Um homem casado procurará agradar a sua mulher e não a Deus."
  - O senhor vem mal, disse Aurelle; não lhe fale de São Paulo, ele acaba de strafá-lo ( de to strafe, punir, atacar) vigorosamente.
  - Desculpe-me, disse o Padre, não strafei senão a um bishop.
  - Padre, disse o doutor, não julgarás.
  - Oh! sei perfeitamente, disse o Padre; o Mestre disse isso, mas Ele não conhecia os bishops.
 Depois tornou ao assunto que o preocupava:
  - Diga-me cá, O'Grady, você que é irlandês, por que é que os capelães católicos têm mais prestígio do que nós?
  - Padre, disse o doutor, escute uma parábola: é a sua vez agora.
  "Um gentleman matara um homem: a justiça não suspeitava dele, mas os remorsos o faziam errar tristemente.
  "Um dia, ao passar por uma igreja anglicana, pareceu-lhe que o segredo seria menos pesado se pudesse partilhá-lo com alguém; entrou e pediu ao vigário que o ouvisse em confissão.
  "Esse vigário era um homem muito bem educado, antigo aluno de Eton e Oxford; encantado com essa rara fortuna, ele apressou-se em atender.
  "- Mas certamente: abra-me o seu coração, pode dizer-me tudo, como a um pai.
  "O outro começou:
  "- Matei um homem.
  "O vigário soltou:
  "- E é a mim que vem dizer isso! Miserável assassino! Não sei se o meu dever de cidadão não seria conduzi-lo ao pôsto de polícia mais próximo... De qualquer maneira, é meu dever de gentleman não o conservar mais um minuto que seja sob o meu teto.
  E o homem partiu. Alguns quilômetros mais adiante, viu, perto da estrada que ia trilhando, uma igreja católica. Uma derradeira esperança o induziu a entrar, e ajoelhou-se atrás de algumas velhas que esperavam perto de um confessionário. Quando tocou a sua vez, entreviu na sombra o sacerdote, que orava com a cabeça entre as mãos.
  "- Meu padre, disse, eu não sou católico, mas desejaria confessar-me ao senhor.
  "- Meu filho, estou aqui para escutar-te.
  "- Meu padre, eu assassinei.
  "Esperou o efeito da espantosa revelação. No silêncio augusto da igreja, a voz do padre disse simplesmente:
  "- Quantas vezes, meu filho?"
  - Doutor, disse o Padre, o senhor sabe que sou escocês. Não compreendo as histórias senão oito dias depois de mas terem contado.
  - Esta lhe exigirá mais tempo, Padre, disse o doutor.

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