Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

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A GRANDE ONDA

Dulcinea Santos
Escritora e Crítica literária
Recife, dezembro/2018

Com o título – A Grande Onda – já podemos imaginar que, ao longo do relato dos acontecimentos narrados, perpassará, sub-repticiamente, um movimento pulsional constante, que se propagará em direção a algo. Também podemos imaginar, logo a seguir, a figura do cronista, ainda bem jovem, debruçado, demoradamente, sobre a imagem da Rosa dos Ventos e de vários mapas, observando os pontos de referência da Terra em que habita. Pois é assim que vemos trabalhar, ainda hoje, o escritor e psicanalista Luiz-Olyntho: sob o espírito da autêntica ocupação. A partir dali, o mundo vai-se mostrando dotado de uma lógica própria, que ele vem tornar clara já quase no final desse texto de grande erudição.

Quanto ao papel exercido pela memória nesses relatos, podemos dividi-lo em dois momentos, que se desdobram na narrativa. O primeiro é trazido, certamente, pela memória involuntária do autor, a memória afetiva que nos apresentará, em cadeia associativa livre, os registros da sua juventude; o outro é-nos fornecido, sem nenhuma margem de dúvida, pela sua memória voluntária, quando nos apresenta alguns fatos e nomes da História.

No primeiro, o cronista fala-nos do modo como o mundo lhe parecia estranhamente dividido: Ao mesmo tempo em que era um só, também era dois, pelo menos dois.  A partir daí, ao fluir da memória afetiva, vão se formando as figuras que encontrarão, na linguagem, este ponto comum: o mundo é correspondência. É Uno e múltiplo. E isso sincronicamente.

Assim é que, então, primeiro ele viu o mundo em sua feição dicotômica: os quatro pontos cardeais alternando-se, paralelamente: Norte, Sul, Leste, Oeste. Quando adolescente, ainda – mas um leitor já não tão ingênuo do mundo –, ao mesmo tempo em que sapateava no cinema, como bom moço torcendo pela mocinha do far West, já lhe inquietava, inconscientemente, essa questão – conforme sabemos, com a teoria, nada num texto literário é sem função; apontemos, pois, aqui a indicação tipográfica com que o cronista escreve o gênero do filme: usa a grafia minúscula para Far West, assim apontando não para o gênero do filme, mas sim para o lugar em que se situa o Oeste: um lugar que lhe parecia distante, longínquo e perigoso. Algo que lhe suscitara certo estranhamento, levando-o a perguntar-se: por quê?

E por associações afetivas, o cronista vai provendo, para nosso deleite, a matéria desse texto erudito e prazeroso, escrito numa técnica perfeita, em que cada uma delas irá compor parte constituinte de uma estrutura narrativa perfeita.

Vem-lhe à mente então a curiosidade despertada entre seu pai e padrinho a respeito do órgão feminino, fonte de vida e de prazer. E o cronista revela sua curiosidade pelo léxico japonês, quando nomeia, com fino humor, a vagina e a vulva da mulher, ao descrever as nuances de sua pronúncia nessa língua, dando-nos asas à imaginação!   

Daí segue narrando as próprias descobertas que lhe advêm em sinuoso deslize. Nessa mesma época, assim o diz, após ler o romance biográfico de Lady Wu, de Lin Yutang, conta-nos que ficara muito impressionado com a dureza de caráter dos personagens, o mais das vezes tão sombrios como o Oeste ao pôr do sol. E comenta: O mundo estava dividido também entre homens e mulheres. Mas agora, aqui, algo já lhe anunciava uma nova lógica concernente aos traços a eles atribuídos: havia mulheres cujas atitudes pareciam masculinas, e também homens cujo comportamento parecia mais feminino do que outra coisa. E, com essa observação, ele, surpreso, conclui pela negação: Sócrates dizia que todos os homens são mortais, e sempre entendi que as mulheres também estavam aí incluídas. É que a lógica com que os personagens do romancista se mostravam já não a podia tomar mais pelo silogismo socrático, nem tampouco pela lógica clássica dos prosdiorismos aristotélicos. Ele agora entendia que alguns – não só os homens, como também as mulheres – não são suprassumidos pelo Todo, ou, o que é o mesmo: Assim como o mundo, que é um e também dois, os homens também formam um, como espécie, e dois, pelo menos dois, como gênero. Ora, sabemos que o gênero é de cunho ideológico, logo, efeito de linguagem, o que não tem nada a ver com a anatomia do sexo! Não se trata mais, para ele, portanto, de ver o mundo pela vertente de uma lógica binária, por um isto ou aquilo, mas, sim, de assegurar, pela lógica da contradição, um isto e aquilo. E comenta, então, que essa divisão torna-se a cada campo cada vez menos evidente. Vale a pena reproduzir ipsis litteris este trecho em que lhe é desvelado, com inigualável agudeza, o lado avesso do mundo:

Descobri depois que cada homem traz consigo, em si mesmo, todos esses tipos de divisões. Como o dia e a noite, algumas qualidades estão no claro, outras no escuro. Somos delas tão inconscientes que alguns parecem viver na longa noite do solstício de inverno e outros ainda nos remotos lugarejos da Noruega, onde é extremamente difícil ver o sol, a qualquer hora da noite ou mesmo do dia.

A partir daí, dá início à segunda parte de sua crônica, com os registros do relato histórico que tratam das conquistas pelo poder por um ocidental, Alexandre o Grande, rei macedônio, e de um oriental, Dario, rei persa. Sim, com razão, comenta, referindo-se à revanche de Alexandre III, ao exigir a adoração de seus súditos, tal como o faziam os potentados orientais: difícil discernir no conquistado o que serve do que não serve. Pois nessa identificação imaginária – ser igual ao semelhante – sabemos nós, que, aí, ele, Alexandre o Grande, se excluiria enquanto diferente! Aqui Luiz-Olyntho comenta um pouco sobre Lacan, ao referir os orientais, encontrando neles um modo de esclarecer-nos, implicitamente, sobre o mecanismo psíquico da identificação simbólica, tão diferente que é daquela, ilustrando-a com o ato inventivo dos artistas impressionistas, que partem do que já existe como criação, para lançar-lhe novos fundamentos. Luiz-Olyntho, com este exemplo, torna mais claro o pensamento lacaniano: o artista impressionista já não traz o modelo para seu atelier, onde o retrata sob uma luz ideal. Vai até ele e pinta-o aí, no seu habitat, com suas próprias cores, ou volta para casa e pinta a impressão deixada pela cena. A partir daqui, vai-nos ficar claro o sentido da metáfora que o título aponta. Temos, aí, o efeito de uma Grande Onda! A Grande Onda – como na física, está aí sob o pulso energético que se propaga no mundo tridimensionalmente, ou seja, em várias direções. Exemplo paradigmático – quem sabe possamos tomá-lo assim – oferece-nos ele com Katsuchika Hokusai, que pintou, ou melhor – como ratifica o cronista –, esculpiu as 36 vistas do Monte Fuji. Entre elas, A Grande Onda de Kanagawa!  Mais ainda: com o olhar de um cuidadoso expert, ele evoca, também, o movimento concêntrico feito por essa Grande Onda, assim descrevendo:

A gravura de Hokusai, em tamanho grande, representa uma grande onda marinha e outra menor, entre as quais, em um pequeno barco pesqueiro, os marinheiros se agarram como podem, temerosos do temporal ameaçador e, ao fundo, vê-se o Monte Fuji, cujo formato a onda do primeiro plano reproduz.

Trata-se de uma alegoria para a saga de Taro e Aki, cujo filho, Naoki, após mergulhar nas profundezas do mar, daí volta, sendo visto agora crescido, conforme narra nosso cronista. E aí, ele – um littérateur – não poderia nos deixar, antes, sem a fruição estética de uma associação colhida na seara literária. E nos apresenta, então, o romance de Assis Brasil – O inverno e depois –, cujo enredo, em determinada altura de sua narrativa, revela-nos o mesmo movimento concêntrico da Grande Onda. Esse romance discorre sobre a trajetória de um músico que, tal Naoki, tenta mergulhar na região profunda de suas origens, para tornar-se um bom homem e um virtuose; mas o mesmo trajeto não será seguido até o fim por ele. Num golpe de mestre, o autor, Assis Brasil, faz o personagem falar da troca dos quadros, uma metáfora para a mudança de destino entre eles. 

Estão aí, enfim, os intertextos com que Luiz-Olyntho mantém um diálogo em sua crônica. Chamo atenção, aqui, ainda, especialmente, para a questão como ele finaliza esse texto magnífico. É de uma agudeza de espírito tremenda! Com este remate – Afinal, não é verdade que, em nosso continente, embora ocidentais, vivemos no lado oriental, no lado em que o sol nasce? – ele elabora, proposicionalmente, a lógica que o guiou ao longo dessa formidável escritura!

 


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