Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

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- do segredo criminoso do quarto aflito –

Uma leitura de

Ao redor do escorpião... uma tarântula?
Orquestração para dançar e ouvir
de
Raimundo Carrero
seguido da crítica
Um romance? Uma novela? Um efeito acústico
de
Raymond C. Westburn
São Paulo, Iluminuras, 2003
por
Luiz-Olyntho Telles da Silva



INTRODUÇÃO 

Escuta um grande segredo:
quando a primeira aurora iluminou o mundo,
Adão já era uma criatura dolorosa,
que pedia a noite, que ansiava pela morte.
(OMAR KHÁYYÁM, Rubáiyát [Rubai 87])

A minha casa fica lá detrás do mundo
Onde eu vou em um segundo quando começo a cantar
O pensamento parece uma coisa à toa
Mas como é que a gente voa quando começa a pensar
(LUPICÍNIO RODRIGUES, Luar do Sertão)
















O livro de Raimundo Carrero é a descrição de uma aventura no infinito do instante. Em cena, dois personagens: um homem e uma mulher, Leonardo e Alice. O cenário, um quarto feito para o amor, um quadro de amor. E há música no ar! Um jazz sofrido, lancinante e lânguido, tocando e embalando a cena.

Em Justine, o primeiro volume de O quarteto de Alexandria, Lawrence Durrell abre com duas epígrafes, de Freud e de Sade, dois autores ocupados com a constituição do sujeito desde a relação com o outro. A primeira diz que


o ato sexual é um processo que envolve quatro pessoas,

enquanto a segunda parte da afirmativa de que


Há duas atitudes possíveis: o crime que faz a nossa felicidade,
ou o nó enredio, que nos impede de ser felizes,


para então perguntar:


Querida Teresa, é possível hesitar por um só momento?


E em seguida, quando Sade pergunta


que argumentação o teu espírito fraco é capaz de descobrir contra isto?,


vejo que essa seria também uma boa epígrafe para nos ajudar a ler o livro de Carrero. Mas enquanto Durrel trata de buscar a verdade das assertivas, descrevendo, em quatro volumes, os pontos de vista de cada um dos quatro personagens, em Carrero o quarteto não tem a mesma forma plástica. É mais sutil, bem mais sutil!

Como podem ver, começo pelo valor das epígrafes. Carrero as tem em grande consideração. Para ele, como ensina em suas oficinas, a ideologia de um texto pode vir assinalada nas epígrafes e por isso elas servem de chaves interpretativas.

Ele abre seu romance com cinco epígrafes, de Osman Lins, Nathalie Serraute, Bakhtin, Julio Cortazar e Bergson-Lourenço Chacon. Todas elas apontam na mesma direção, destacando aspectos da arte de escrever. Para realçar o cerne de cada uma das citações, ainda que com o risco de perder a força de algum aspecto, diria que os autores epigrafados falam, respectivamente, do


escrever como uma via de acesso à verdadeira natureza
do próprio ato de escrever,


quer dizer, para escrever, se me permitem o truísmo, há que escrever. Depois, assinala a importância da inspiração,

um eflúvio, uma radiação, uma luz que flui na direção [do escritor],
cintila fracamente, e depois vai se apagando e tudo fica escuro.

Através de Bakhtin, Carrero nos apresenta sua preocupação com a construção do personagem:

importa [no fundo] o que ela é para si mesma.

A seguir utiliza-se de Cortazar para mostrar que

uma frase deve ser construída de modo a potencializar o dizer
para que ele possa chegar ao fim
tal qual uma improvisação de jazz ou uma grande sinfonia de Mozart.

E o último autor diz como construir esta frase:

há que utilizar a pontuação e toda a coreografia do discurso.

Bonito, não é mesmo! A coreografia do discurso. Pois, se tomamos em consideração o posfácio de Westburn, veremos como o autor de Ao redor do escorpião... se utiliza de travessões, pontos e interrogações para caracterizar a mulher, e reticências e vírgulas para o homem; e também para ele as adversativas.

O romance de Carrero é literário. Que digo com isso? Não o são todos? Entendo que ele quer tirar das letras, estas que estão para todos, e também dos tropos, seu valor máximo. Suas epígrafes são como uma espécie de lembrete alfinetado na capa do livro: prestem atenção nas letras e na gramática para captar minha mensagem! Se for preciso – e será! – releiam-no.



O texto está estruturado em torno de três capítulos. Cada um deles composto por exatas cinco partes, numeradas, sequencialmente, de um a quinze. Nota-se uma organização. Melhor: nota-se a necessidade de uma organização. O tema é complexo.

A primeira parte expõe o tema. As seguintes, como em um longo e lento adágio, vão retomando o tema e acrescentando, discretamente, novas informações. A última, como uma coda, retoma todos os pontos, mas não conclui. A última frase do livro é igual à primeira. A mesma repetição acontece no décimo terceiro trecho. O ricorso viconiano, retomado por James Joyce em Finnegans Wake está presente. Sua última pontuação é dois pontos: podemos começar tudo de novo. Pois recomecemos:

A sequência dos quinze trechos está marcada pela música, como se fossem variações em torno do mesmo tema.

A ASSUADA
O azul de céu, do teu olhar,
Era o céu azul, do meu olhar.

(JONNY MANDEL e PAUL FRANCIS WEBSTER, na versão de LUIZ BITTENCOURT, Adeus às ilusões)


 




Então, pelo início. Vamos dar atenção à exposição do tema.  Da capo.

OLHA e vê: o marido dorme passado o clamor do sexo, dança de pernas e braços, gemidos de agonia e gozo, desprotegido, abandonado e só, despojado na mansidão lerda do sono.

Essa a primeira frase. Como uma frase musical, ela será repetida e desenvolvida ao longo do texto.

Trata-se de um momento de compreender o instante de ver. A cena é posterior ao clamor do sexo. Clamor do sexo? Parece tão óbvio!

Dança de pernas e braços, gemidos de agonia e gozo.

Movimentos a especificar o clamor, parecem. Lembremos que o autor nos chamou a atenção para o valor das palavras. Elas devem estar potencializadas. E o que é clamor? Qual sua potência? Clamor é uma gritaria de súplica, de protesto, de reclamação, de ameaça, e também de aplauso. Na sua sinonímia entram grito, lamentação, rogo e assuada, que no português medieval tinha o sentido de um ajuntamento de pessoas armadas para fazer desordem, confusão. – Não há dúvida, passado o clamor sexual é um modo de dizer do momento sucessivo ao coito, um coito agitado, tenso, entre a agonia – precursora da morte –, e o gozo. A frase seguinte, um close up cinematográfico, mostra a cena composta de uma

cama larga, lençóis alvos e travesseiros altos.

E – Gerald Thomas não deixaria escapar –, tudo protegido, tudo filtrado por um mosquiteiro. Ampliada a cena, a personagem que olha e vê,

revólver na mão, prepara-se para festejar a bala que enfeitiçará o coração da vítima.

A necessidade da morte está presente. A agonia já a presentificava. Meu Deus! Essa mulher vai matar seu marido!

Nossa angústia não diminui antes do quarto parágrafo. Aí o autor confessa: trata-se de um sonho, na verdade um pesadelo, como especifica no terceiro trecho, esse sonho – diferente de um sonho de angústia –, do qual não se consegue sair.

Mais tranquilos, podemos retomar a frase da mulher com o revólver. O efeito da bala será o mesmo de um amavio: enfeitiçará o coração do marido, sem ofender as carnes. Mais adiante, ainda no primeiro trecho, a bala é comparada a uma flecha que, ferindo o coração, faz verter lágrimas. A flecha encantada é a flecha de Cupido, a cupiditas, é a flecha do erótico Eros grego.

É hora de a aranha entrar em cena. Começa na orelha esquerda. É grande e peluda e felpuda. Uma tarântula (pp.16-7).

Do mesmo modo que todos os elementos da cena, a aranha também vai se desdobrando, como em uma pintura de Brake, em quadros que se sucedem em direção ao infinito, em um crescendo. A tarântula no joelho (p.23), nos seios ( 27).O revólver vem para a coxa, para o peito, o decote em V, da mulher que olha e vê.

Ainda no terceiro parágrafo entra em cena a mãe. Tão exíguo o parágrafo anterior que esse terceiro bem poderia passar por um segundo. E a mãe, não fosse uma cantora de banheiro, poderia passar por Nora Ney cantando Não tenho você, na letra de Paulo Marques e Ari Monteiro.

Você vive a meu lado 
E eu não tenho você
Existe algo errado
Porém não sei o quê

Choramos sempre juntos
Os nossos dissabores
Vivemos lamentando
Esta ausência de amores

Você vive a meu lado 
E eu não tenho você

Você vive pra outra
Que também nunca lhe quis

Que certamente faz pouco
Do seu viver infeliz
Enquanto eu quase louca
Procurei o meu próprio fim

Definhando pouco a pouco
E você não gosta de mim
Definhando pouco a pouco
E você não gosta de mim

Entrou em cena a música, um samba nostálgico, falando de uma falta. A filha escuta a mãe cantar a saudade de um terceiro, excluído da cena. Alice, olhando para o marido adormecido, lembra a mãe sentindo a falta de seu marido, de seu pai, quem sabe? – Um quarteto!

A mãe abre a sensibilidade de Alice para a música. Agrada-lhe o sax de Dexter Gordon, isso após ter experimentado o grave jh (Johnny Hallyday cantando, quem sabe l’amour que manque a la vie), e mesmo o inquieto cp (Charlie Parker, The Bird). A mãe, cantando, conta-lhe coisas.

Na lembrança de Moacyr Franco, canta Adeus às ilusões, de Jonny Mandel e Paul Francis Webster, na versão de Luiz Bittencourt:

Vivi os sonhos meus,
Nos braços teus,
Um grande amor surgiu,
Do teu calor,
O azul de céu, do teu olhar,
Era o céu azul, do meu olhar,
À sombra do sorriso teu, fiquei,
Até que um dia mal me despertou, Adeus às ilusões, adeus,
Tudo já passou, morreu,
Guardo na lembrança o amor,
Do sorriso teu.

À sombra do sorriso teu, fiquei,
Até que um dia mal me despertou, Adeus às ilusões, adeus,
Tudo já passou, morreu,
Guardo na lembrança o amor
Do sorriso teu.

Para sair de casa e ir ao mundo, ir ao encontro das ilusões, é preciso perdê-las! A falta de preparo para a perda pode ser fatal, como aconteceu a um dos cantores favoritos de Alice, Luigi Tenco (p.27), aquele do ciao, amore, ciao.

A confusão, armada de revólver, busca revolver a desordem. É preciso pôr ordem no caos e criar o mundo.

CANTO DA NOITE
É noite; agora despertam todos os cantos dos amantes. E a minha alma é também um canto de amante.
(F.NIETZSCHE, Assim falava Zaratustra).

Com sua larga e peluda face,
pra Irlanda a desgraça.
(J.JOYCE, Finnegans Wake).

É noite, e há o negro bosque vicejoso da noite, o bosque que brota com força na força da noite. Mas Alice não consegue penetrá-lo.

Para possuir o corpo do marido, é preciso matá-lo? - A maior posse é a daquilo que se mata. Mas quem olha para quem? Quem mata quem? Quem é quem?

Ela deitada, ele dorme, ele deitado, ela dorme (p.24).

No capítulo 10 de Finnegans Wake, o texto desenrola-se em três colunas. Enquanto no meandrolato desenvolve-se a história, nas margens aparecem, na esquerda, as observações de Shem, o escritor, e na direita as de Shaun, o carteiro. Mas em determinado momento eles trocam de posição e com isso tolda a tranquilidade do leitor.

Em Ao redor do escorpião..., não se sabe bem quem sonha! As imagens são especulares, um fala desde o lugar do outro, por vezes de um maiúsculo Outro lacaniano.

Alice ainda é a imago de sua mãe. Está a força do vento, a força do jazz, de jh, de cp, de dg, mas a marca da mãe cantando felicidade foi-se embora, e a saudade aqui no peito ainda mora (p.27), do Lupicínio Rodrigues, é que conta. Lembremos que ela segue assim:

.. 
E é por isso que eu gosto lá de fora 
Porque sei que a falsidade não vigora.

A minha casa fica lá detrás do mundo 
Onde eu vou em um segundo quando começo a cantar 
O pensamento parece uma coisa à toa 
Mas como é que a gente voa quando começa a pensar

Enquanto as músicas de Paulo Marques e Ari Monteiro, Moacyr Franco, o sorriso na sombra, e Lupicínio Rodrigues representam um passado deixado em Santo Antônio do Salgueiro, o jazz representa seu momento atual, quem sabe mesmo uma tentativa de desprender-se desse passado. Mas a música é a mãe.

O erotismo da mulher confunde-se com o da menina. Deve ser como menininha ainda que essa senhora navegue no vasto ventre escuro do mar.

O negro bosque, a negra aranha, a negra música, tudo a latir no ouvido, como se o ouvido prescindisse da letra. O bosque negro da noite bem pode representar a buscada e impossível sexualidade adulta, colorida, dificultada justamente por ainda navegar no ventre escuro da mãe dominadora que, ela sim, Alice imagina, conhece o mundo!

Mas Alice deseja rir. Deseja ou quer? É diferente o riso do sorriso? Ri (junto com outro), ou riso (ri-só)? Rir com o outro é uma forma primitiva de dizer da relação sexual. Os esquimós se pronunciam assim. Alice se confunde com a gargalhada, uma e outra vez. Se ela sorri, é o negro que toca a sombra do seu sorriso (p.28), tocando, possívelmente, I’m a fool to want you.

SÃO JORGE RIDES AGAIN

lua de são jorge
cheia branca inteira
oh minha bandeira
solta na amplidão

(CAETANO VELOSO, Lua de São Jorge)

Ao luar os amantes uniformizam-se na cor, o enluarado São Jorge os agita. Caracterizado o pesadelo do segredo criminoso do quarto aflito (p.26), o revólver nas mãos de Alice parece um pouco com o tear nas mãos de Penélope: o que faz ao sol, desfaz à luz da lua. Seu efeito é de procrastinação, e os pretendentes, como Leonardo, sofrem a dúvida. A busca é a do encontro ideal, faltoso por definição.

Não deixa de ser interessante lembrar a etimologia inglesa do nosso substantivo revólver, revolver, tal qual a escrita do nosso verbo revolver, com o sentido de revisar, agitar o espírito. É interessante também o sentido da palavra inglesa para pesadelo, que aí se diz nightmare, égua-da-noite.

Nas lembranças de Alice, ela e os meninos cavalgavam cavalos de pau. Já na infância o cavaleiro frequentava seus sonhos: um marido cavaleiro (p.33). Mas, como diz o autor,

..
o cavaleiro do sono não serve para ilusão
dorme o sono e não sonha
não luta contra o dragão
para salvar a donzela
que sonha em matar o cavaleiro
ao som da negra canção

o cavaleiro do sono na verdade é o dragão
que vem na noite encantada
para morrer na espada
da donzela
sem compaixão
... (p.39)

São Jorge, matando o dragão, à luz da lua, é o dragão. São Jorge e o dragão, encarnações de Apolo e Delfine, de Cadmo e o dragão guardador da fonte de Ares, de Édipo e a Esfinge, de Tristão e o dragão que, assolando a Irlanda, ameaçava Isolda, revivem em Leonardo e Alice. O ato sexual, fonte de vida, permanece monstruoso. É como se Leonardo, novo Cadmo, novo Jasão, não terminasse nunca de vencer a serpente celestial, metamorfose do carneiro de velo amarelo. O dragão protege a fonte do Deus da guerra, Ares, e a guerra, Heráclito dixit, é o pai de todas as coisas. A batalha do escorpião e da tarântula é homérica, não como a Batrachomyomachia, mas sim como a própria Ilíada, a guerra do amor.
Do desequilíbrio, a possibilidade da vida. E os blues da orquestração representam sempre o tema da libertação.


I’m a Fool to want you

J. Wolf and J. Herron

I’m a fool to want you
I’m a fool to want you
To want a Love that can’t be true
A love that’s there for others too

I’m a fool to hold you
Such a fool to hold you
Too seek a Kiss not mine alone
To share a Kiss the Devil has known

Time and time again I said I’d leave you
Time and time again I wen’t away

But then would come the time when I would need you
And once again these words I’d have to say

I’m a fool to want you.

Pity me, I need you
I know it’s wrong
It must be wrong
But right or wrong
I can’t get along without you
I just can’t,
My love...

Time and time again I said I’d leave you
Time and time again I wen’t away

But then would come the time
When I would need you
And once again these words I’d have to say

Take me back
I love you
Pity me
I need you.

I know it’s wrong
It must be wrong
But right or wrong I can’t get along
without you...

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