Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

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AS SEREIAS DE LEOPOLD BLOOM1

Luiz-Olyntho Telles da Silva


Senhores e senhoras

Fosse eu um personagem como o padre Ben Cowley, poderia dirigir-me a vocês como meus amigos em Joyce. Que seja, entremos no espírito deste ágape! Pois verdade que é uma alegria estar aqui, com os leitores de Joyce, com o Donaldo Schüler, nosso São Jerônimo, escritor original que enriqueceu nossas letras também com inúmeras traduções dos clássicos gregos e do Finnegans Wake de nosso homenageado, além de ajudar tantos a ler este enigmático Ulisses.

Pois hoje, 16 de junho, estamos aqui para falar de Ulisses. E não vou falar-lhes do todo, estruturado sobre a técnica do fluxo de consciência de que ele, conscientemente, se apropriou desde as leituras de Édouard Dujardin e de William James e de sua relação com o escritor Italo Svevo. Embora estejamos ainda no período das doze horas, falar-lhes-ei de outro tempo. Se me permitem a liberdade, tomarei da gramática francesa um tempo entre o passado composto e o futuro anterior para falar-lhes de um episódio ocorrido daqui a pouco, às dezesseis horas desse dia: tratarei das sereias.

Tendo escapado das rochas, no capítulo anterior, o labirinto das ruas de Dublin por onde faíscam as rodas de aço da carroça do vice-rei, e antes de se enfrentar com Polifemo, em Ulisses o enorme Cidadão que – na falta de uma enorme pedra –, termina por jogar nele uma parodística lata de biscoitos, Leopold Blomm passa, no capítulo onze, pelas sereias.

Há música no ar. As sereias são capazes de enfeitiçar até o vento. Em inglês existem duas palavras para designar as sereias, siren, do grego Σειρήν, como empregado por Homero, e mermaid, de mere, que além do sentido de marco, limite, fronteira, no vocabulário poético também se traduz por lago e mar, mais o verbete maid, que se traduz por donzela, moça solteira, virgem; mermaid é a maid of the sea, a virgem do mar, e parece ter entrado para a língua inglesa por volta do século XIV. Nesse capítulo, Joyce usa sempre a versão mermaid. E, se elas enfeitiçam até o vento, é porque um dia foram enfeitiçadas.

A saga das sereias começa com seu pai, o deus-rio Aquelôo. Corria entre a Etólia e Arcânia, quando, ao atravessá-lo, o jovem Aquelôo foi ferido por uma frecha e, ao morrer, cedeu nome e espírito ao rio. Vingativo, quando quatro ninfas ao fazerem sacrifício aos deuses esqueceram-se de incluir seu nome, cresceu, transbordou e arrastou todas as quatro para o mar, transformando-as nas ilhas Equinades. Amoroso, teve filhos com várias mulheres. Com Melpômene, a Musa que preside a tragédia, foi pai das sereias. Como sua mãe, serão cantoras! Embora  algumas  pinturas,  como  a de William Waterhouse,
William Waterhouse  
por exemplo, retratem-nas em grande número, originalmente, eram duas: Partênope, cuja raiz παρϑένος, denota virgindade, e Ligia, cujo nome deriva de uma flor das margens do Mediterrâneo. Quando lhes aumentam o número, uma delas irá chamar-se Teles, vejam só! Joyce chamará uma delas, não de Ligia, mas de Lydia. Lydia, com o significado de irmã, é a irmã de Mina.

No começo de sua história, Partênope e Ligia eram mulheres belíssimas e faziam parte do séquito de Perséfone. Mas quando Hades, apaixonado, raptou Perséfone, responsáveis que eram por seu cuidado, as duas irmãs pediram aos deuses asas para procurá-la por terra, céu e mar. A mãe da jovem raptada, Deméter, indignada, fez mais: na tropelia, com um feitiço, transformou-as em almas-pássaros. Afrodite tê-las-ia metamorfoseado em pássaro, com cabeça e tronco de mulher, e também como peixe, da cintura para baixo. Não podendo então usufruir do prazer, atraíam os homens para devorá-los. Assim que, de um modo ou de outro, eram umas devoradoras de homens.

Mas as sereias carregam consigo ainda uma característica semântica, a qual, na verdade, foi a que me levou a falar delas para vocês: o primeiro elemento de sua etimologia parece ser σειρά, com o sentido de corda, laço, liame e mesmo armadilha. Não é o que faz a música? Não tem a música o poder de nos envolver? Como com qualquer coisa se faz música e todas as profissões têm seu instrumento, logo todos fazem música, todos seduzidos sedutores. Se de uma concha, por si só, colada à concha do ouvido (p.312)2, já se pode ouvir música (p.311), com uma lâmina de gramínea, na concha de suas mãos, basta soprar. Mesmo de um pente e papel de seda você pode tirar uma melodia. [...] O caçador com seu clarim. Clarina. Você tem a? Cloche. Sonnez la. O pastor a sua flauta. Pfuiti pequeno minúsculo. O policial um apito. A sete chaves! Limpar a chaminé! Quatro horas está tudo bem! Dormir! Está tudo perdido agora. Tambor? Badapom. Espera. Eu sei. Pregoeiro, quadrilheiro. Long John. Despertar os mortos. Pom. Dignam. Pobre do pequeno nominedomine. Pom. Isso é música. Quero dizer naturalmente é tudo pom pom pom muito do que eles chamam de da capo. Ainda assim você pode ouvir. Quando nós marchamos, marchamos em frente, marchamos em frente. Pom (p.321/277-8).

A música desse capítulo está estruturada conforme a uma fuga, e todos os instrumentos possíveis são utilizados para compor esta fuga per canonen. Aqui, depois de caracterizar as cinquenta e oito frases da exposição do tema, o autor dá por acabado. E, da capo, recomeça! A fuga, como disse uma vez o Prof. Donaldo, no seu Narciso errante, é a tradução do sofrimento humano. Como Ulisses, cada um de nós, a cada dia, corre o risco de afogar-se, no trabalho, nos amores, na tristeza, na bebida. A ilha das sereias será agora o Bar Ormond, um dos lugares preferidos pelos dublinenses para ouvir música. Atendem aí duas maids, miss Lydia Douce, o bronze, e miss Minna Kennedy, o ouro. Os metais denunciam uma época homérica. Ondas espumantes percorrem a sala em canecos de cerveja.

Às frases desacompanhadas seguem agora as respostas com várias vozes. As duas primeiras (respectivamente nas páginas 286 e 287) reproduzem exatamente o sujeito, configurando uma fuga real, mas já são por si mesmas enganadoras porque a imitação estrita não seguirá ao longo do capítulo. Nas respostas seguintes, quando já veremos alterados os intervalos do sujeito, a linearidade obedecerá à outra lógica e a fuga tomará sua característica tonal, impondo-se, contudo, a cada tanto, o que se chama de uma fuga enigmática. Caracteriza esta última a frase: Que o caranguejo avance por completo e recue pela metade. Ou, como diz Joyce: Em toda música se você pensar bem. Dois multiplicado por dois dividido pela metade é duas vezes um (p.308). É com essa teoria que Joyce justifica o movimento de Miss Kennedy, quando ela verteu o chá na xícara e depois verteu de volta o chá da xícara no bule (p.287), e mesmo que, depois de queimada, volte a ficar morena (p.287). Sua testemunha é o calvo Pat, o garçom, ao encontrar ouro (Miss Kennedy) na porta sem chá que retornava (p. 297). E, por falar em porta, estamos frente à mesma escansão do tempo lógico que permite aos prisioneiros, no apólogo de Jacques Lacan, reconhecer que todos são brancos.

As repostas começam sob a tônica da clave de Sol, como disseram os lábios molhados da senhorita Douce, rindo (p.286). O vice-rei, tremendo idiota, vira a cabeça para trás e a senhorita Kennedy tristemente se afasta da luz do sol. São como as ondas. Enquanto a senhorita Kennedy solta da garganta uma risada estridente e esganiçada, a senhorita Douce sopra e bufa por suas narinas que estremecem impertnite como um focinho em busca (p.289). É o começo da música. Em seguida entra o Sr. Simon Dedalus, para o piano, embora as primeiras notas de pífaro saiam é de seu cachimbo (p.290). Os refrãos são de Floradora, que na peça começa por ser uma pequena ilha das Filipinas, onde fabricam uma doce fragrância do mesmo nome. O perfume das flores, o perfume de Bloom está no ar. Metem psi coisas (pp.299. 315, 319): agora nesta ilha moram as sereias do Bar Ormond. Mudam o piano de lugar (p.292), acertam o diapasão (p.293), explode a rolha de uma garrafa (p.293), os sapatos de Blazes Boylan rangem no chão (p. 294); o tempo parece tender à sincronia, são sempre quatro horas; segue Idolores, de Floradora, agora a bela do Egito, retine a caixa registradora (p.295); adejantes (p.31), os dedos no piano vão e voltam; por se¬rem virgens, a virgem Maria, de azul e branco, também é sereia (p.288); por se¬dutora, Molly também o é (p.299). Sedutores são também os tordos cantadores (p.302)[throstle], o codornizão crocitador (p.308). A música toma conta, desde o tamborilar dos dedos de Bloom (p.309), castagnettes no ar (p.318), o retinir das vasilhas, as gotas de chuva, gligloglu gligloglu (p.313), alguém que bate de leve na porta, toc toc toc (p.313), harpias de lentos harpejos (p.315).

Contudo, através da quietude do ar uma voz cantava para eles, baixo, não era chuva, não eram folhas em murmúrio, como nenhuma voz de instrumentos de corda ou de sopro ou comovocêaschama cítaras, enternecendo seus ouvidos serenos com palavras, os corações serenos de cada um as suas vidas relembradas. Bom, bom de ouvir (p.304).

Escutemo-lo junto à ária das sereias (vs. 184-191 do canto XII de A Odisséia), na tradução do Professor Donaldo:
Pra perto, preclaro Odisseu, pra perto, brilhante
aqueu, nosso hino delicie de perto o teu coração.
Todos nos ouvem. É a regra. Sem nos
ouvir ninguém passou aqui em nau negra.
Com nosso saber prossegue mais pleno.
Do que se passou nos campos de Tróia sabemos tudo
por divino favor, o padecimento de troianos
e argivos, mais o ocorrido na prolífera terra.
3
Sabendo ser quem somos, quando nos atraem só pode ser para uma paranoica armadilha, e há que resistir à sedução. Excitados, Ulisses se faz amarrar ao mastro do navio enquanto – metem psi coisas (pp.299, 315, 319) –, Bloom, com frágil categute (pp.307-8), suas mãos laçava, desenlaçava, atava, desatava (p.305). Na escolha do lugar para se amarrar, não propriamente o mastro, o ιστός, mas o ιστοπέδῃ (Canto XII, v.179)4, quer dizer, exatamente a parte onde encaixa o mastro, pode-se ler uma preocupação de Ulisses com o centramento. Nestes barcos de um só mastro, seu lugar precisa ser tão central como centrado em si mesmo precisa ser o homem para o enfrentamento com os desafios de cada dia; para Leopold Bloom, é preciso estar enlaçado visceral e cirurgicamente a si mesmo, vale dizer simbolicamente castrado, para poder resistir a outros laços.

Mas preciso ir disse o príncipe Bloom (p.314), enquanto o Sr. Dedalus [fica] olhando para [...] uma última, uma solitária, última sardinha de verão. [E] Bloom tão só (p.320). Mas ainda é dia!                                

Joyce ao violão


Fortuna crítica:
Dulcinea Santos










































































































































 




























Conheça também o comentário
do autor
ao romance
ULISSES
de James Joyce







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1. Contribuição ao Bloomsday organizado por Donaldo Schüler, em 16/06/2010.
2. Os números entre parenteses remetem às páginas de Ulisses, na tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro, para a Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2005.
3. HOMERO, Odisséia, Tradução de Donaldo Schüler, Porto Alegre, L&PM Pocket, vol.II, 2007, p. 225.
4. Idem, p. 222.