Luiz-Olyntho Telles da Silva Psicanalista

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Pais e filhos

Luiz-Olyntho Telles da Silva
31 de dezembro de 2013



Meu pai foi um grande contador de histórias. Gostava disso! As anedotas bem humoradas eram suas preferidas. Contava uma depois da outra e, quando pedíamos mais, costumava dizer que tinha um saco cheio, mas as formigas não raro comiam justamente aquela que ele queria contar. Nos fazia insistir. Uma vez ouvi-o narrando a de um homem que estava por morrer: desenganado e sem recursos nenhum, o capataz de um fundo de campo não tinha sequer um padre para lhe dar a extrema unção. Um padre? Isso seria um luxo! Não tinha nem mesmo uma vela para segurar. Foi então que sua fiel companheira, uma índia aquerenciada, em vez de um círio, colocou em sua mão um tição colhido do borralho. Mal o xiru velho sentiu o calor queimando a mão, reuniu suas últimas forças e exclamou, com sua voz arrastada: - Morrendo e aprendendo!

A morte era um de seus temas. Quando, no tropel em busca de uma vaca desgarrada, o cavalo de seu pai, ao enfiar a pata em um buraco, rodou, veio a morte a galope para lhes ceifar a vida. Ainda menino, aprendeu a valorizar a queda. Mas a aprendizagem mais importante, a da própria morte, é verdade, cada um leva consigo! Morrendo e aprendendo.

Assim, divagando, pareceu-me dever ensinar algo a meus filhos, de preferência antes de morrer. Mas já estão grandes, sabem ler, escrever, fazem contas e também contam seus próprios contos. Que mais ensinar? Foi quando me surgiu a pergunta: o que tinha aprendido de meus pais? A primeira lembrança foi a da autorização para ir a uma festa do pessoal da minha idade, sem a companhia dos adultos. Papai me chamou a um canto de seu quarto, ajeitou minha gravata, certamente uma das suas, emprestada, e me disse: - Meu filho, quando te deixo sair, não estou te dando liberdade e sim responsabilidade. Lembre-se disso. Pois nunca me esqueci dessa advertência. Valorizo a contingência e aprendi com ele a ser honesto.

E minha mãe? O que me ensinou? Que pergunta! Era professora. Ensinava de tudo, e a morte também não lhe era estranha. Mas, antes de suas palavras, embora fosse grande leitora, lembro-me de seus atos, todos ditados por um entranhado senso de dever para com o outro. E, quando as coisas começavam a querer andar fora dos trilhos, sabia ser dura. Aliás, meu pai também. Nisso eram solidários. Se não era como Ethan Allen Hawley, de quem Steinbeck nos conta que, só por distração, pensava em chicotear os filhos, quando as travessuras passavam de certos limites, não muito largos, sabia recorrer à cinta para umas boas lambadas. Mas talvez o mais importante dos ensinamentos de mamãe tenha sido o da existência de um outro mundo! Desde pequeno sempre estive muito familiarizado com o mundo dos espíritos. Com eles ela falava, e eles com ela! A nós restava o ciúme. Sim, porque para essas comunicações com as almas dos finados vinha gente de muitos lugares, todos muito carentes e necessitados de atenção. Mamãe amparava a todos! Sempre tinha para eles uma palavra de conforto. Ensinava resignação. E isso lhe dava forças para viver e continuar seu trabalho. Mais tarde, quando já me tomava por adulto, meu pai falecido, ela veio morar comigo e eu, confundido, sem ter captado a importância e a necessidade de seu trabalho, muitas vezes, em nossas discussões, injusto, interpretava-o como um motivo de orgulho – tenho de dizer – covarde: apoiava-se nos mais fracos para sentir-se mais forte. Era uma época em que eu pensava que cada um tinha de encontrar seu próprio caminho; e ainda penso de tal modo, embora agora eu reconheça haver, antes e além disso, muitas outras maneiras de dar a ajuda de que todos precisam, seja para andar, falar, conseguir um trabalho, entender as regras, encontrar-se, lidar com as perdas, viver; mais cedo, ou mais tarde, todos precisamos de alguma ajuda; uns mais, outros menos. Quando nascemos em um mundo que nos supre apenas algumas necessidades básicas, nem sempre é fácil entender a existência e a realidade de outros mundos, com outras formas de vida. Mais fácil acreditar na ficção científica.

Depois, eu mesmo passei a me ocupar de pessoas com necessidade de ajuda para entender a si mesmas. Descobri na linguagem um método para perscrutar outro outro mundo, agora interior, ainda que constituído de uma infinidade de outros, inclusive de outros já idos. Mas para entender a linguagem de minha mãe foi preciso esperar mais tempo; para reconhecer a verdade de sua dedicação ao outro, tão óbvia, tão transparente, precisei de quase toda minha vida, já não tão curta. Ajudou-me, imensamente, parece incrível, uma frase, mesmo um pouco áspera, de minha filha mais velha. Foi quando lhe pedi para parar de fumar. Sei que é uma coisa difícil de fazer, tanto o parar quanto o pedir, mas eu acabara de ser alertado de uma possível tendência familiar ao câncer e achei que seria minha obrigação avisá-la! Ainda brinquei com ela, dizendo que mesmo sendo implicante eu a amava, e queria que vivesse saudável por muitos anos. Sua resposta veio rápida: - É! Implicância e câncer são hereditários. Ah! Meu pai! Tanta responsabilidade assim também não! Mas ela tinha razão: os filhos saem parecidos aos pais. Atená, ao nascer da cabeça de seu pai, Zeus, já toda armada e dançando a pírrica, não se lhe parecia no gosto e na disposição para a guerra? As marcas masculinas em Madame Bovari, junto de toda sua capacidade de entrega, absolutamente feminina, revelam um traço de Flaubert, seu criador, como no seu tempo denunciou Baudelaire. Verdade que minha filha, ao tornar-se advogada, deu curso ao valor familiar de justiça. Meu filho, ao seguir seu caminho, colocou, na preocupação em ajudar o outro a se encontrar, sua marca pessoal: busca recuperar empresas que em algum momento de seu percurso perderam as rédeas da administração. E a filha menor tomou em sério o valor da arte, para mim e meu pai, até então, apenas um hobby. A arte nos mostra facetas da vida invisíveis sem os seus filtros. Hereditariedade, sim, mas não apenas do sangue. A manutenção dos valores familiares indica também outra gênese, aquela resultante de uma adoção. Os filhos que dão certo são os adotados pelo coração. Mesmo os pais de sangue precisam adotar os filhos para eles terem direito à vida. Quando Odisseu retorna para casa, passados vinte anos, a única pessoa a reconhecê-lo é sua ama, sua antiga babá. A identificação, tanto a centrípeta, como a centrífuga - para usar uma terminologia de Wallon -, exige intimidade. Quem não se lembra da governanta da família Von Trapp, na película de Robert Wise, The sound of music (1965), interpretada por Julie Andrews, a noviça rebelde? Sua dedicação às crianças, e ao pai das crianças, diga-se de passagem, aproximou toda a família. E mais, aproximou, e segue aproximando as plateias. Encantadas, elas vêm cantar junto com os atores; e estes, por sua vez, a cada ano pelo menos, reúnem-se, desde então, para comemorar esse sucesso que continua a emocionar as multidões - o capitão Von Trapp, ao violão, dando o ritmo para todos cantarem. Tamanho êxito por certo faz pensar em uma enorme carência dessas afluências. Entre a mãe que pare e a que adota existe toda uma gama refratada pelo interesse dedicado ao filho. Se existem as loucas que se desfazem do feto no lixo, as medeias que os espicaçam para vingar-se dos maridos, as mafiosas que acreditam ser o filho coisa sua, de seu especial deleite, há também aquelas que tomam o sentido de parir ao pé da letra, qual seja o de dar um filho à luz, dar um filho ao marido, dar um filho para o mundo e, para isso, são capazes de, como o pelicano, o Pie Pellicáne, dar de comer ao filho a própria carne ou, ainda, como Maria, tecer com lágrimas o sudário do filho nascido para ser um rei.
 
E então aprendi: os pais ensinam aos filhos vivendo suas próprias vidas! Vivendo e aprendendo.


Fortuna crítica:
Dulcinea Santos*
Recife, 13 de janeiro de 2014


Ao ler este breve ensaio memorialístico - Pais e filhos -, veio-me à mente a leitura recente que fiz do Ecce Homo, de Nietzsche, no qual ele confessa como chegou a ser o que é. Nesse livro, igualmente, recorda o pai e diz que sua recordação é como uma doçura de vida que é a própria vida. Considerava-o terno, gentil e mórbido. Morrera cedo, aos 36 anos, e, justo nessa idade, Nietzsche conta que ele próprio descera ao ponto mais débil de sua vitalidade. Para reverter essa realidade, contudo, diz-nos ser necessário ter vontade de poder, ou seja: pulso forte na vida, confiança no futuro da vida, observando que, ao olhar lá embaixo no obscuro amálgama do instinto de decadência, fora esta sua experiência constante, que fora assim que enfibrou seu pulso – variando as perspectivas, razão por que acreditava talvez ser o único para o qual seria possível uma Transmutação dos Valores. Creio que alguns poucos, no curso da vida, assim também procedem, realizando ditosa reviravolta em direção ao bem viver.

Possivelmente, foi esse sentimento de vida que permitiu à figura paterna dessas memoráveis histórias familiares escapar ao sentimento de decadência, da queda e da morte que a galope ceifara a vida de seu próprio pai. A partir dessa desventura, certamente, pela sua própria natureza, sentira o impulso a dizer Sim à vida! Na fala e no gesto, ambos inolvidáveis, ao preparar o filho para ir à festa pela primeira vez, dá-nos um bom exemplo de energia vital: pondo-lhe a gravata que lhe emprestara - um signo para o homem – , e assim o advertindo: Meu filho, quando te deixo sair, não estou te dando liberdade e sim responsabilidade, o que lhe transmitia, de fato? Na verdade, paradoxalmente, não estava aconselhando-o simplesmente a responsabilidade - o que lhe reivindicava claramente era antes vontade de potência! Com Pascal, que conceitua a responsabilidade como o ato de dominar-se a si mesmo, podemos, por certo, compreender melhor o modo como o queria formado: dominando-se, tornar-se-ia livre para resistir às tentações! A outra espécie de liberdade, conforme a predica este filósofo, é liberdade estéril.

Talvez pareça tolo seguir esta tênue pista que me leva a acreditar que ele aprendera a realizar a reviravolta da vida ao modo de Nietzsche, vivendo-a com pulso firme e crença no futuro e assim aprendendo a seguir a direção que se opõe à do homem decadente: tinha o costume de contar anedotas, essas histórias que procedem do bom humor, provocando o riso. Ora, com Freud, entretanto, sabemos que os chistes, o humor, l.s., são poderosas forças psíquicas na obtenção do prazer.

No extenso ensaio sobre a significação da comicidade - O Riso -,  Bergson indaga logo no início: O que há no fundo do risível? Afirma ser o riso condição necessária à adaptação do homem à vida e à sociedade, as quais exigem certa elasticidade do corpo e do espírito, esclarecendo que é por essa via que se pode escapar de uma atividade adormecida e que se isola. E aí nos faz compreender que o riso é a própria chama da vida. A tocha da vida, legada aos filhos!

Quanto à mãe, um coração simples e o espírito voltado às alturas, aos filhos, sabiamente, ensinou que a Vida, para usar uma expressão de Nietzsche, pode se ver além dos ângulos!

E então você, seu filho, assim chegou a ser o que é: tornou-se um experiente escafandrista dos sonhos noturnos!


* Dulcinea Santos é escritora e crítica literária.

 


 
Famía Von  Trapp (The sound of music - 1965)

   







CRÔNICAS DO AUTOR:

31.12.2013: Pais e filhos @
02.08.2013: Os suspiros do rei de Sião @
07.07.2013: Transitoriedade @
11.03.2013: Amor sem fim
@

05.03.2013: O engano de Calvero @
06.02.2013:
Garrafas ao mar @
27.11.2012:
O belo gesto do maestro @
03.08.2012:
A Messias @
26.07.2012:
Maria e Herodes @
23.12.2011:
Ler é uma grande aventura @
05.12.2011:
Iluminura turca @
12.08.2011:
O rapto de Lucrecia @
13.06.2011:
Shirin Ebadi e o exílio @
1º.06.2011:  
Música, Maestro! @
25.03.2011:
Almas à venda @
31.07.2010:
Corra como um coelho @
28.05.2010:
Um tablao flamenco @

15.03.2010: Os vizinhos @
15.01.2010: Tsuru  @

31.12.2009:  Pombo de papel @
30.12.2009:  A quebra-nozes  @



























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