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ENTRE A ESPIGA
E O PÃO
UMA LEITURA DE
ARMINDO TREVISAN
(Santa Maria, RS, 1933)
Comentários de
Luiz-Olyntho Telles da Silva
Porto Alegre, dezembro de 2016
Conheci Armindo Trevisan
já faz muitos anos. Embora costume me enganar sempre com as datas, provavelmente
tenha sido ainda na década de setenta. Também não lembro o título exato
de sua palestra, mas o que me atraiu à sua exposição foi o tema que iria
discorrer na Biblioteca do Instituto Cultural Brasileiro Norte-Americano,
na Rua Riachuelo: O Próximo.
Marcou-me, desde então, seu peculiar modo de falar, no qual me pareceu
sobressair uma atenção legítima com sua plateia e também com suas referências
literárias. E, ao falar da Parábola do Bom Samaritano, descrita por São
Lucas, sua intimidade com o texto me fez ver que seu preparo para aquela
exposição não era da véspera, não era apenas da noite anterior. Muitos e
muitos anos depois, na Feira do Livro de 2003, participamos, ambos, junto
a mais dois poetas, em uma mesma mesa sobre O silêncio e os processos
de criação. Passou o tempo e voltei a escutá-lo, então, sobre Poesia,
em um pequeno auditório da Casa de Cultura Mario Quintana. Desta vez, a conferência
estava apoiada em seu livro A Poesia, uma iniciação à leitura
poética,1 e, ao final, o autor teve a gentileza
de, ao autografá-lo, acrescentar uma simpática dedicatória.
Depois disso, um encontro fortuito, em uma livraria, possibilitou-nos um
agradável momento de prosa literária e, mais recentemente, trocamos algumas
palavras na apresentação de um novo livro de poemas de uma colega sua. Foi
quando prometeu enviar-me alguns dos seus, o que fez já no dia seguinte.2
É sobre essa seleção que, temerário, farei alguns comentários. Falar de
um autor de inúmeros títulos, premiado por diversas instituições, sendo que
um desses galardões recebeu o aval de um Manuel Bandeira e um Cassiano Ricardo,
é mesmo uma ousadia e requer acurada ocupação analítica. E quando olhamos
para sua biografia, ao mesmo tempo em que entendemos o porquê de tanto reconhecimento,
vemos de imediato a força de sua formação iniciada no pequeno povoado de
São João do Polêsine, na região de Santa Maria (onde nasceu), com os Padres
Palotinos, especialmente com o Pe. Pedro Luiz Bottari que lhe criticava os
poemas. Depois dos estudos universitários regulares, ainda se especializou
em Portugal e doutorou-se em filosofia na Suíça. Embora os cursos regulares
sejam uma espécie de requerimento cultural, para quem pretende avançar no
campo do conhecimento, os encontros fortuitos, oferecidos pela vida, costumam
ser ricos em aprendizagens. Pois ao falar de sua formação, o Prof. Trevisan
não deixa de mencionar os críticos encontrados pelo caminho. Não se esquece
das intelectuais santa-marienses, as avant-garde Neide Brasil e Ruth
Farias Larré, que lhe apontavam os novos rumos da poesia provocados pelo
modernismo, choque de que foram alvos, na época, tantos poetas em formação.
Entre esses, também o poeta Ferreira Gullar, que recentemente nos deixou,
sofreu esse impacto. Lembra-se também da crítica substancial do poeta modernista
Murilo Mendes que, depois de um começo, do qual poderíamos dizer antipático,
terminou por recomendar seus poemas e até a apresentá-lo a personalidades
literárias, como, por exemplo, Clarice Lispector e João Guimarães Rosa. Guimarães
Rosa, a propósito, leu o poema Difusão, de Trevisan, e, apreciando-o,
detectou nele, imediatamente, uma influência plotiniana.3
E o poeta, mesmo não concordando com a interpretação, registrou o comentário,
quero crer, como uma homenagem à grandeza do autor de Sagarana. A
defesa de Trevisan foi honesta ao reconhecer-se devedor tanto de Dante Alighieri
como da filosofia medieval, representada por Tomás de Aquino, em cuja obra
um dos axiomas reza que Bonum est diffusivum sui (o bem se irradia
de si mesmo). Também confessa que na época tinha pouco conhecimento de
Plotino e, mais tarde, certamente reconheceu que quando Plotino, nos seus
estudos sobre o Um, que vive em absoluta e completa tensão, diz que, ao distender-se,
o Um produz uma emanação, muito possivelmente tenha havido uma influência
dele tanto na obra de Tomás de Aquino como na de Dante. A justificativa
de Trevisan para o título de seu poema, Difusão, está em sua última
estrofe:
De
Deus só quero
o seu
excesso
que desabrocha
em criatura.4
Difusão é a tradução
da diffusivum de São Tomás, enquanto essa bem pode ser uma tradução
da περιλαμψις (perilampsis) de Plotino, em
geral chamada de emanação.
Essa é uma das inúmeras portas que o Prof. Armindo Trevisan deixa aberta,
como para chamar o leitor ao diálogo. E seu texto deixa mesmo o leitor com
essa vontade. Ao usar a expressão aberta, tenho de dizer que ela
me é inspirada por seu importante estudo de Miguel Ângelo, criador da obra
aberta. Professor de História das Artes, seu estudo sobre o artista
é amplo, abrangendo tanto sua vida como suas obras. Seu estudo sobre o teto
da Capela Sistina é riquíssimo, registrando detalhes que vão desde as suas
descomunais medidas, seus temas, a tonalidade especial das cores, para compensar
a pouca iluminação da sala, os recursos - por que não dizer -, maneiristas,
para o melhor posicionamento das figuras, lançando mão, para tanto, junto
da arquitetura concreta, de uma arquitetura inventada, e,
também, quando se tratou de limpar a fuligem das pinturas, em nossos dias,
a velocidade em que a obra avançava. Não bastassem essas importantes observações,
sua aula ainda abrange os artistas precedentes ao gênio de Miguel Ângelo,
a começar por Masaccio, nascido quase cem anos antes, que deu uma dimensão
própria à revolução iniciada por Giotto no campo da perspectiva e por humanizar
o corpo dos santos, ainda no século XIII. Depois de Giotto, a plasticidade
alcançada por Masaccio, somada à composição alcançada por Paolo Uccello (cuja
Batalha de São Romano tive o prazer de ver, com seus tons
pastel e suas figuras bidimensionais, na The National Gallery, de
Washington), é considerada por Trevisan como base para a pintura e a escultura
de Miguel Ângelo, das quais ele destaca suas pietás, mas não só. Dá-nos
ainda uma amostra da poesia desse grande artista, preocupado, como todos
nós, com o amor e a morte. Por tudo isso, Armindo Trevisan atribui a Miguel
Ângelo a Conquista da Integração das Artes.5
Com o mesmo tenor nos apresenta Van Gogh, Cézanne, Caravaggio, acentuando
em cada um suas características próprias. E que dizer de seu estudo sobre
as tapeçarias medievais? Tanto a de Bayeux, como a do Apocalipse
de Angers, e A Dama e o Unicórnio são descritas em seus mínimos
detalhes: tamanho, número de peças originais e restantes, encomendadas por
quem, onde podem ser vistas hoje, número de cores e suas variantes, tipo
de tear, mestres tecelões, etc., etc.
O título do livro em que traz essas maravilhas, A Dança do Sozinho,
ele a tirou de uma dança africana, apoiado, também, em uma lembrança de
que Piet Mondrian gostava de dançar sozinho. Verdade que frente a muitas
situações na vida o homem parece estar sozinho. Uma vez, o escritor austríaco,
Peter Handke, em seu romance narrativo-historiográfico, O medo do Goleiro
diante do Pênalti, disse que ele, mais que ninguém, está abandonado
a si mesmo, mormente na hora do pênalti. Para Trevisan, isso acontece quando
se está frente a uma obra de arte.6 Estar sozinho,
diga-se de passagem, é estar com seus próprios recursos, quer dizer, é estar
com os recursos aprendidos na relação com outros. E não creio que nessa hora,
o Professor se esquecesse de uma companhia sempre disponível, ao menos para
quem tem fé, exemplificada na canção que aprendi a cantar no colégio:
Com
Cristo no barco
tudo
vai muito bem,
e passa
o temporal.
E A Dança do Sozinho
ainda traz uma linda coleção das pinturas de Van Gogh e Cézanne, além de
reproduções das tapeçarias, as quais, imagino, devam ter custado uma fortuna
em direitos de publicação.
Novos Ensaios7 é um livro anterior,
composto de textos escritos para o Blog do autor. Os temas são abrangentes,
indo desde uma visita à caverna Font-de-Gaume, um sítio arqueológico
de época paleolítica, situado no município de Eyzies-de-Tayac-Sireuil, no
departamento da Dordonha, na França, que lhe faz meditar sobre a esperança,
passando por temas como o dom-juanismo, em que se dedica a Darcy Ribeiro
e Anthony Quinn, um estudo sobre Gerald Clarke e Truman Capote, em que se
destacam finíssimas observações sobre Flaubert, sua amizade com Erico Veríssimo,
plena de observações literárias, sua visita ao pequeno apartamento do Poeta
Manuel Bandeira, também uma pergunta sobre a validade do escritor, onde recorre
a Nietzsche, e assim por diante. Mas há, contudo, um texto destacado: no
terceiro terço do livro de duzentas e trinta e oito páginas, podemos ler,
no Índice, um único título grafado todo ele com maiúsculas – KAFKA!
E quando o visitamos, à página 184, encontramos um subtítulo: Por que
não citam o seu mais belo conto? Pois neste texto, em que nos relata
partes de um conto constante de cartas escritas para uma menina que havia
perdido sua boneca, pela própria boneca, uma verdadeira pérola na obra do
escritor Tcheco, o Prof. Armindo Trevisan aproveita para dizer o difícil
que é traduzir em palavras uma ideia. Seu parti pris é o de que um
escritor precisa ser confiável e, para isso, precisa revelar os limites
geográficos de seus interesses em literatura e artes. Seu Índice,
a propósito, com mais de meia centena de títulos variados, dizem bem da amplidão
de sua circunscrição. Passeemos um pouco, então, por entre as linhas desse
ensaio: A importância de conhecer seus próprios limites convém, antes de
tudo, ao próprio escritor. Na luta cotidiana com o Anjo, diz o Professor
– referindo-se, provavelmente, à luta de Jacó que, tendo saído vencedor,
tem seu nome mudado para Israel –, cada um tem de conhecer seu calcanhar
de Aquiles. No seu caso, a ficção! E, como para desculpar-se do que virá
a seguir, diz-se, como Poeta, um ficcionista sui generis. E, mais
que isso, ou, quem sabe, antes que isso, um fingidor! Como na Autopsicografia
de Pessoa,
O
poeta é um fingidor.
Finge
tão completamente.
Que chega
a fingir que é dor.
A dor
que deveras sente.
Porém, como distinguir,
explicando corretamente a diferença, se ambos os vocábulos têm a mesma raiz?
– parece perguntar o autor. E é verdade, ficção e fingidor
derivam do mesmo fingo, fingere, que, em latim, exprimia algo modelado
com cera, argila, ou outra massa. A escultura é produto da ars fingendi.
As palavras parecem mesmo não dar conta de tudo que se pretende dizer, elas
não alcançam a verdade toda, como diz Lacan. E, como para aprofundar mais
ainda seu exame, entra pele adentro, tomando como caminho a via do sentido
do tato. E, outra vez, a ambiguidade: Não lembra se foi Bergson,
ou quem mais, que disse do tato o primeiro e universal sentido. Não lembra?
Ora, o Prof. Trevisan doutorou-se justamente em Bergson! Parece, antes, um
recurso para expressar a dificuldade de dizer quem foi o primeiro! Porque
muitas vezes dizemos que o primeiro foi fulano, ou beltrano, ou sicrano,
esquecendo tantos com tantas contribuições anteriores. Brecht, por exemplo,
frente à afirmativa de que Napoleão ganhou a Guerra, pergunta: - E não
levou junto nenhum cozinheiro? Bergson ocupou-se com a relação espaço
tempo e, ao meu entender, uma de suas grandes contribuições foi o reconhecimento
da necessidade de integração dos elementos temporais sem a qual o
tempo não tem continuidade. E essa integração inicia, como todos os demais
atos psíquicos, pelos órgãos dos sentidos. Mas é verdade também que o tato,
em si, que alguns dizem ter sido o primeiro sentido do homem, foi estudado
por muitos, e, para dar um nome, entre eles, por Ruffini, em cuja homenagem
batizaram-se-se algumas das células epiteliais sensitivas. Tato também é
sinônimo de cuidado, o que lembra o mito inventado por Hegel, no qual o homem
é filho do Cuidado. E, das tantas tactilidades, a suprema, diz Armindo Trevisan,
é a do amor, quando ambos os parceiros, no orgasmo, parecem abduzidos.
Ele diz que a abdução seria feita pela sensação corporal, na sua forma
mais pura de ser matéria. Outra vez a dificuldade! Ora, o sentido primeiro
de abdução é o de afastamento, de desvio. Na filosofia, Aristóteles assim
nomeou uma modalidade de silogismo em que a premissa maior é verdadeira enquanto
a menor é apenas provável, o que compromete a veracidade irrefutável de uma
conclusão. Contemporaneamente, o termo tem conotado um rapto alienígena.
Se assim o entendermos, uma vez que o termo está grafado entre aspas, poderemos
concluir que no orgasmo há uma espécie de rapto no qual cada um dos partners
fica entregue a algum outro que não necessariamente aquele presente, o que
talvez exija do leitor uma compreensão platônica, como não quer o Prof. Trevisan
(embora, ao discorrer sobre a Parábola do Semeador,8
ele peça ao fantasioso Semeador que o ensine um pouco dessa sua
fantasia). Sua preocupação, contudo, parece ser com uma forma de cristianismo
em que prevaleça o corpo. A espiritualização, para ele, parece ser uma forma
– platônica –, de renegar a matéria. Daí, imagino, sua dificuldade com a
ficção. Contudo, diz-nos, o verdadeiro cristão precisa acreditar que sua
alma imaterial, e imortal, está unida a um corpo. Como argumento recorre
às palavras de São Marcos (10:1-8), quando este, contrapondo-se ao ensinamento
de Moisés, diz que desde o princípio da criação, Deus os fez macho e fêmea.
Por isso deixará o homem a seu pai e a sua mãe, e unir-se-á a sua mulher.
E serão os dois uma só carne [...]. E, nesse último versículo, ele interpreta
que os dois dizem de um espírito e de um corpo fundidos em uma
só entidade carnal. Qualquer coisa fora disso será mentira, obra do Diabo.
E está disso tão convencido que mesmo a obra de Descartes não passa para
ele de falácia. Melhor que dizer cogito, ergo sum, seria dizer: -
sinto frio, me alimento, tenho relações com uma mulher, ergo sum.
É neste tempo, o tempo gerúndio do vivendo, que o homem deve filosofar.
E esses são os argumentos de Armindo Trevisan para dizer por que nunca
apreciou as ficções de Kafka, às quais, contudo, sempre
admirou! Parece uma contradição, bem sei, mas não! Se, por
um lado, tanto apreciar, como admirar, encontram-se na sinonímia
de considerar, ter em alta conta, o sentido primeiro de apreciar,
registrado por Houaiss, é o de avaliação e julgamento. E é
isso, quero crer, que o Prof. Trevisan diz nunca ter feito. Ele nunca olhou
criticamente para a obra de Kafka, apenas deixou-se deslumbrar, assombrar
pelo espantoso das narrativas kafkianas que disseram tanto a tantos. Lembro-me,
de imediato, da reação de Gabriel Garcia Márquez ao ler a metamorfose de
Gregor Samsa: - Então se pode fazer isso! E daí parte todo seu realismo
mágico. Recentemente, também, escutei Ian McEwan falar da influência sofrida
de Kafka e, na leitura de seu último romance, Enclausurado, encontrei,
no capítulo 5, uma incrível constatação de seu personagem, o feto que escuta
e aprende com a conversa da mãe com seu amante: - Com a repetição as palavras
se tornam tão nítidas quanto a verdade. Este, aliás, é um recurso de
que se valem os ficcionistas. Uma mentira repetida torna-se verdade. Essa,
de fato, é uma constatação já observada por Gustave Le Bon, quase ao final
do século XIX. E a conclusão do Prof. Trevisan, então, como é sua característica,
deixa uma abertura para nova discussão: o que se sobrepõe a quê? A ficção
ou a realidade? E, quem sabe para melhor caracterizar a complexidade do
tema, ainda teríamos de lembrar o não mencionado Jeremy Bentham, para quem
a verdade tem uma estrutura de ficção.
Armindo Trevisan passa-me a ideia de ser um homem, senão de muitas, de
profundas amizades. A opinião surgiu-me de seu livro Ler por dentro.9
É um livro que termina perguntando se Existirão Clássicos no século XXI?
Centrado em Saint-Beuve, seu ensaio parte da definição de Aulus Gelios,
passando pelo criterioso Thomas Sibillet. Depois, recorre ainda a Carpeaux
e Borges para concluir que o exame da questão requer a menção de dois importantes
fenômenos, a sonegação emocional e a debilitação da memória
coletiva, pois, para ele, clássicos são os autores que exploram as
recordações mais íntimas, mais secretas do ser humano, e as fazem dialogar,
não só com a memória coletiva do povo a que pertencem, mas com a memória
coletiva de outros povos. Dividido em três partes, as duas primeiras
de Ler por dentro falam de sua amizade com dois de nossos autores
queridos, o poeta Mario Quintana e o escritor Erico Verissimo. Verdade que
citações de ambos permeiam quase todos seus escritos, mas aqui os ensaios
lhes são dedicados. O segundo dos ensaios sobre o poeta revela um Trevisan
leitor de Joyce: Retrato de Mario Quintana quando vivo. Na leitura
de sua poesia, examina os amores do poeta, e, na negativa de uma cadeira
na Academia Brasileira de Letras, seus desamores. Para definir o poeta, endossa
a visão de Erico Verissimo: um anjo disfarçado de homem. É essa sabedoria
de Erico que Trevisan valoriza, uma sabedoria apoiada na proverbial burrice
de Sancho Pança que possibilitava ao autor de O Continente aceitar
tão bem a vida. Seu texto, construído sobre as cartas que Erico lhe enviava,
reflete suas leituras, a vida de casado e sua admiração pela esposa, a preocupação
com os filhos, as viagens, sua opção pelas pessoas boas, com um pequeno toque
sobre as pessoas que conheceu em vida, como Aldous Huxley, de quem traduziu
Point Counter Point (junto com Leonel Valandro) para a Editora
Globo. Huxley, aliás, também acreditava na bondade das pessoas, especialmente
na dos escritores (no que se enganava, como demonstrou Carpeaux), o que
pode ter influenciado na tomada de posição de Erico Verissimo. Mas conheceu
também Jorge Luis Borges e um dia o grande John dos Passos, autor de Paralelo
42, Aventuras de um jovem e, entre vários outros, Fadado para
vencer, veio almoçar em sua casa. E Trevisan não fecha o ensaio sem
dizer da posição de Erico frente à vida e a morte. Ler por dentro
analisa ainda um poema de Manuel Bandeira e ajuda a melhor conhecer Fernando
Pessoa. E, por falar em poesia, traz uma frase que, por si só, talvez valha
todo o livro. Trata-se de seu conceito sobre poesia: - Poesia é lucidez
enternecida.
Pois é hora de ler sua poesia.
Comecemos por Meditações Poéticas Sobre Os Evangelhos.10
O livro está dividido em sete partes. Dessas, seis são denomindas glosas
e a sétima, ainda que também o seja, apresenta-se como um diálogo,
esta forma tão ao gosto de Platão. Das seis primeiras, quatro estão dedicadas
aos quatro evangelhos, ao mamalujo, como a eles se refere Joyce,
no Finnegans Wake: Mateus, Marcos, Lucas e João; a quinta
está dedicada ao Apocalipse e a sexta a uma carta de São Paulo.
Glosas são, entre outras coisas, anotações para esclarecer
o sentido de uma palavra ou mesmo de uma frase, de um conceito, de uma doutrina,
etc. Na maneira como o Prof. Trevisan a usa, faz-me lembrar dos comentários
à Torá, os midrash (do hebraico Mi, “quem”, e Darash, “explicou”
– quem explicou), feitos pelos rabinos e depois acrescentados ao
Talmud. Além disso, a glosa, para usar sua própria
classificação, é uma forma métrica, uma forma de composição poética
(embora não registrada no rol do seu livro teórico, à p.192). Verdade que,
pelas poucas notícias que tenho, o gênero não é muito usado por nossas bandas,
embora seja comum seu uso por parte dos cantadores do Nordeste. Pelo que
estou informado, foi registrado pela primeira vez, em português, no Cancioneiro
Geral de Garcia Resende, no ano de 1536. Na sua forma tradicional, para
não dizer clássica, o verso consta de um mote, que os cantadores em geral
tratam como um desafio, o mais das vezes um dístico, a que respondem com
uma ou mais décimas, a qual, ou as quais devem terminar repetindo o verso
do mote, pois glosa é sinônimo de volta. O Prof. Trevisan
usa uma variante: tomando como mote um ou mais versículos da Bíblia, comenta-os
poeticamente por meio de dísticos de número variável, com o cuidado de manter
as rimas na forma de uma redondilha maior e, em vez de repetir o verso, ao
final, vai cantando e elaborando-o em suas parelhas.
A primeira parte consta de dez glosas ao Evangelho de São João.
A escolha do apóstolo João, para começar, merece um comentário. O Evangelho
de João difere sobremaneira dos outros três, considerados, entre si, sinópticos,
quer dizer, que têm muito em comum entre si. Há mais tempo, noutro lugar,
comparei o trabalho dos evangelistas ao de um cartel: todos estudam o mesmo
assunto e, depois, cada um por si, faz suas próprias observações. Pois São
João foi quem fez mais registros da vida de Cristo anotados apenas por ele
mesmo, e é a essas anotações que Armindo Trevisan dirige suas glosas. Do
mesmo modo, em relação aos outros três evangelistas, procurando sempre aquele
incidente relatado apenas por um deles. Sua primeira glosa é ao primeiro
versículo do primeiro capítulo de São João, que Trevisan transcreve asim:
No
princípio de tudo,
aquele
que é a Palavra já existia.
Ele estava
com Deus
e ele
mesmo era Deus.
Quantos poetas inspiraram-se
nesses versos! Goethe, para contrariá-lo, põe na boca de Mefistófeles as
seguintes palavras:
Im
amfang var die Tat.
(No princípio
era a ação).
Talvez para dizer da
multiplicidade dessas inspirações, em sua composição o Prof. Trevisan segue
o texto de São João da Cruz. De modo geral, os versos são muito bonitos,
com metáforas verdadeiramente inspiradas, a palavra como luz brilhando nas
trevas da ignorância, o milagre de sua transmutação, o sopro da vida, a
vida como um inacreditável milagre diante de nossos olhos, e Jesus, caminhando
sobre as águas, marcha sobre as lágrimas e a incompreensão.
A sétima, que toma como mote os versículos 35 e 49 a 51, do 6º capítulo,
do Evangelho de São João, é belissima e começa assim:
Entre
a espiga e o pão
move-se
a história do mundo.
Que belos marcos para
expressar a relação da natureza com a cultura! Quem não se lembra da Galinha
Ruiva: Primeiro, arar, depois, semear; cuidar do crescimento; colher; moer;
processar; sovar; assar e, só então, comer. E depois continua:
Sem
pão a boca emudece,
sem a
palavra o pão falece.
Aí está São João afirmando
a primariedade da palavra. O mundo é constituido por ela. Sem ela não há
terra, não há céu, nem dia, nem noite; se existesse, sem a palavra, o leão
não estaria nem perto de ser Le roi des animaux. Não haveria nada!
Na próxima, glosa este momento único na história de Jesus, que é o de sua
escrita. Quando lhe trazem a mulher adúltera para ser apedrejada, conforme
a lei mosaica, o Mestre, sentado em um banquinho, garatuja na areia. O quê?
Ninguém sabe. Fernando Pessoa, a propósito, disse que ele não tinha biblioteca.
Na glosa ao Evangelho de São Mateus destaca a bem-aventurança e,
nos mil dedos do amor, a importância do tato. E aí reconhece
também, no grito do abandonado, o mais humano dos brados.
De São Marcos
canta a parábola do semeador cujas sementes caem do mesmo modo como são
semeadas nossas vontades. Nesse propósito, o diretor Martin Campbell, no
seu filme de 2011, Green Lantern, diz que a vontade é a força mais
poderosa do universo; a força da vontade é criadora. E acredito que nessa
glosa se possa escutar também a lei fundamental da razão pura prática, de
Kant: Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer-te sempre
como princípio de uma legislação universal.
De São Lucas, que era médico, glosa a ressucitação de Cristo e seu
reaparecimento a dois discipulos que não o reconhecem. Cristo mostra-se
capaz de res-sucitar, mas os discípulos não se mostram capazes de o re-conhecer.
Então o poeta recita:
Ressuscitado,
surgis
ao lado de tais discípulos
os quais, ao final da viagem,
se acharam com os corações
ardendo! Como lhes estariam os pés
na poeira do caminho,
no silêncio de um crepúsculo
quando as primeiras estrelas
nasciam da escuridão,
e a lua andava à procura
das amantes do Rei Herodes?
Para o poeta, espírito
e corpo são uma só unidade. Levado pelo vento, de um lado para outro, sofre
o coração tanto quanto os pés na humana busca do amor.
Na Glosa ao Apocalipse, revolta-se o poeta contra a visão do dragão
retratada nos primeiros versículos do capítulo 12. Os sinais oferecidos
pelos visionários precisam ser mais esperançosos. Dragões são os desempregos,
as más políticas que devoram os homens, deixando-os à mingua. Que convivam
sim com os déspotas, deixando para os homens, lembra ele, a esperança de
Dante: homens novos como a verdade, esbeltos como o vento e profundos
como as noites.
Ao glosar um fragmento da primeira carta de São Paulo aos Coríntios,
Armindo Trevisan, escolhe, quiçá, a melhor frase do Apóstolo: Mesmo que
eu fale a língua dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como o
badalo de um sino que tine. Machado de Assis, quando se vale dessa frase,
no conto O Alienista, prefere, no lugar de amor, a tradução
por caridade. Mas o sentido é o mesmo. De certo modo, um suplemento
à constatação de São João, de que no princípio estava o verbo. O homem pode
alcançar um domínio sobre esse verbo, mas se não tiver amor, de nada adianta.
Se não tiver amor ao homem ao qual dirige sua palavra, será nada, menos
que um pássaro psitando ao vento. Se não tiver consideração ao outro, de
nada lhe valerá a medicina de Avicena, nem a poesia de Omar Kháyyám ou a
sabedoria de Coélet.12
Sua última glosa é um Diálogo com a Senhora da Boa Morte. Sua referência
é a Nossa Senhora, a Maria, mãe de Jesus, que não morreu e, em vez disso,
foi ao céu assunta. Trevisan, então, com mais sorte do que o poeta Heine
com a Esfinge, pergunta-lhe sobre as maldades da Morte e seu poder de remediá-la.
Não existindo desde o início, a morte insinuou-se pela ação da cobra vil
que seduziu Adão a ser igual ao Criador. E aqui a atenção do leitor é requerida
mais uma vez: o castigo da cobra será o esmagamento pelos pés das Três
Virtudes Cardeais. Ora, Virtudes, em número de três, são as Teologais,
a Fé, a Esperança e a Caridade; as Cardeais são quatro, a Prudência,
a Temperança, a Fortaleza e a Justiça. Por que então a troca? Ousaria compreender
a contração pelo valor cardinalício de todas elas. As Cardinais absorvem
todas as outras virtudes justamente por seu valor de cardo, de gonzo, eixo
ao redor do qual giram outros valores. Representadas iconograficamente sempre
por mulheres, as Virtudes bem podem ser desdobramentos da virtuosa Mãe de
Deus.
A dança do fogo,13 editado por
Paulo Bentancur, levou-me de volta ao Rubáyát (especialmente o de número
110), de Omar Kháyyám, de minha adolescência:
Ó
Adão e Eva
Como
deve ter sido amargo
O vosso
primeiro beijo,
Para
que nos gerásseis tão desesperados!...
Armindo Trevisan escreve
assim:
À
luz de tua pele invento a noite.
Nela
me embrenho até a morte alheia.
Ninguém
é mais sozinho do que o açoite
que apaga
tua luz, e me incendeia.
Diferente do poeta persa
que viveu nos séculos XI e XII de nossa era, Trevisan já sofreu muitas outras
influências. Quem duvidaria de que, para escrever um poema como Às vezes,
tivesse passado os olhos pelo Moi e toi, de Paul Geraldy?
...
Que importa
que lhe lembre uma ave
se o
teu torso, que já conhece nu,
a nada
se assemelha? Ou és uma ave,
que esconde
o voo nas asas e sozinha
flutuas
até mesmo na cozinha?
Em seus poemas, primeiro,
é como se o apelo sexual levasse à descoberta do outro e, depois, a relação
com o outro promove uma descoberta em si mesmo.
Mas a influência de Kháyyám parece forte, como em Sê humilde:
...
em mil
fontes que mil e uma noites
fizeram
para tua solidão.
Haverá forma mais notável
do que dizer que mesmo toda a história do mundo, representada pelas mil
histórias de Šahrāzād, não são suficientes para terminar com a solidão do
homem?!
Esta é a solidão d’A Dança do Sozinho. Ao se enfrentar com página
em branco do futuro, no momento mágico de tornar-se presente, o homem só
pode valer-se de seus recursos. Entre esses, para Trevisan, está também a
poesia de Manuel Bandeira que, no seu Nu, diz assim:
Quando
estás vestida,
Ninguém
imagina
Os mundos
que escondes
Sob teus
vestidos.
Mas a influência maior,
sofrida também pelo pernambucano, diria ter sido do autor do Cântico
dos Cânticos. Ao descrever os amores de Salomão e Sulamita, possível
revivência dos sumérios Tammuz e Ishtar, e também dos egípcios Hórus e Ísis,
respresentantes do eterno amor ideal do homem e da mulher, como em um diálogo,
um faz o elogio do outro.
No Cântigo dos Cânticos, o poeta recita:
Como
és bela, minha amada,
como
és bela!...
São pombas
teus
olhos escondidos sob o véu.
E Trevisan, na parte
dois, Grinalda de Eros, em Trigal, compõe, com força
própria, estes lindos dísticos:
Se
os beijos, que exameiam nos teus lábios
são como
o trigo que nasceu ao sol,
se eles
não caem como maçãs, nem nadam
em tua
saliva – peixes silenciosos –
oh, revela:
em que dunas se camuflam,
à noite,
quando se acocora a lua
como
uma índia, e em teus peitos rufam
tambores
que emudecem, se estás nua?
A dança do fogo recebeu
o prêmio APLUB. Um merecido laurel.
Quanto a mim, fico agradecido pela possibilidade da redação do presente
texto.
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Aquarela de Eduardo Arigony
Fortuna crítica:
Caro Luiz-Olyntho:
O estudo que dedicaste aos livros que te enviei é
algo absolutamente único em minha fortuna crítica.
Não imaginava que alguém pudesse escrever, sobre o "conjunto" de minha produção
poética e ensaística, uma análise tão fraterna, tão honesta, tão destituída
de ciúme ou espírito competitivo. Não imaginava que um psicanalista fosse
capaz de tal distanciamento estético e poético, para poder penetrar no meu
universo lírico, e ali soubesse (não só pudesse) lê-lo por dentro com
tão gentil e aguda generosidade!
Deste-me uma surpresa memorável.
Destaco outro elemento no teu escrito: tua expressão estilística linear,
despojada, curiosamente perpassada por um tipo bastante raro de frisson
emotivo. Pensei que fosses mais frio, mais insensível (permite-me pensar
heterodoxamente de ti, uma vez que, neste momento, no Brasil, vivemos rodeados
de rancores estéreis, de picuinhas de um ridículo que me evoca os filmes grandiosamente
obscenos de Hollywood sobre Nero). O país inteiro parece estar num delírio
febril de onicircunvagueante autossuficiência!
Doutor Olyntho: sou obrigado a reconhecer que teu ensaio -
tua análise é objetivamente um ensaio, na sua definição mais objetiva e discreta
-, proporcionou-me momentos de autorreflexão.
Parabéns por tua capacidade crítica
e por tua finesse de leitura lírica.
Aceita meu abraço fraterno e amistoso:
Armindo Trevisan
28.12.2016.
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